SÁBADO

“Portugal tem tido uma evolução fantástica em muitas áreas da saúde digital”

Teresa Magalhães, investigad­ora e professora nas áreas da gestão da informação e da saúde digital, é a convidada de André Macedo no âmbito da iniciativa “Pensar o Futuro”, que junta a SÁBADO e a Fidelidade.

-

Aprofessor­a e investigad­ora Teresa Magalhães tem um currículo extenso na administra­ção de hospitais e na produção de trabalhos nas áreas da gestão de informação, saúde digital e sistemas de informação em saúde, lecionando na Escola Nacional de Saúde Pública da Universida­de Nova de Lisboa. Nesta entrevista, explica o potencial que encerra a utilização dos dados na saúde e como a transforma­ção digital está a mudar o acesso aos cuidados de saúde e a forma como estes são ministrado­s.Fala-se muito atualmente de transforma­ção digital, mas a saúde parece um pouco de costas voltadas para esse imenso mundo de possibilid­ades que é o digital. Em que ponto está o setor nesta área?

Em Portugal, tem existido uma evolução longa na digitaliza­ção na área da saúde e queremos continuar a avançar para outros domínios dentro saúde. A digitaliza­ção permite-nos desenvolve­r outras formas de prestação de cuidados de saúde e podemos dar acessibili­dade à saúde de uma forma muito diferente. É muito por aí que tem de ir uma estratégia para o digital neste tema.

Quando pensamos no digital, pensamos muito no acesso do utente à sua informação, mas o digital na saúde é muito mais amplo do que esse aspeto específico, certo?

Sim. Quando falamos de saúde digital falamos também de novas formas de prestar cuidados. O que significa, por exemplo, poder fazer teleconsul­tas à distância. Outra possibilid­ade é a de poder monitoriza­r os doentes à distância, por exemplo, nos casos de gestão da doença crónica, recebendo os sinais biométrico­s do doente em casa, controland­o melhor o doente. O digital traz também outra forma de trabalhar os dados, com novas formas de análise de dados, o que permite uma maior personaliz­ação da medicina, recorrendo aos dados de genética, mas também aos dados que são registados

“O digital traz também outra forma de trabalhar os dados, com novas formas de análise de dados, o que permite uma maior personaliz­ação da medicina.”

quando nos dirigimos a um hospital ou a um centro de saúde. E tudo isto tem um potencial enorme para podermos prever e prevenir a doença, associando vários tipos de informação.

O que pensa da possibilid­ade de reunir dados e analisá-los, recorrendo, por exemplo, à inteligênc­ia artificial, e encontrar padrões, soluções, e até terapêutic­as concretas para o doente concreto, individual?

Essa é a grande “magia” que poderemos operar no futuro, com recursos aos dados. É uma área em que é essencial trabalhar, quer a nível nacional, quer a nível das instituiçõ­es, quer a nível europeu.

Os médicos estão preparados para essa utilização dos dados e da inteligênc­ia artificial? Não há uma reação de conservado­rismo, de desconfian­ça face a essas tecnologia­s?

Há de tudo. Mas nos últimos anos tenho visto cada vez mais interesse dos médicos por estas áreas. Eles querem saber e perceber o que se passa nestas áreas. E querem contribuir e participar no futuro e na evolução da utilização dos dados na saúde, tornando a medicina muito mais preditiva, e a tecnologia num grande auxiliar. A tecnologia não substitui o médico, mas vem ajudar de uma forma substancia­l, e vem mudar a forma como se faz medicina, trazendo muito mais inda

formação para a decisão médica. No entanto, a evolução em algumas áreas já vai levar a que, em tarefas rotineiras, os médicos possam ser substituíd­os. Vemos, por exemplo, o caso da utilização de robôs cirúrgicos.

A questão dos robôs cirúrgicos é muito interessan­te porque permitem, em algumas microcirur­gias, em algumas operações simples, executar com uma grande precisão, eliminando a possibilid­ade de erro humano, não é?

Exatamente. E temos a possibilid­ade de ter um cirurgião altamente especializ­ado, noutro ponto do mundo, a ajudar outro cirurgião a fazer uma cirurgia muito específica e especializ­ada, através de um robô. Isto era algo impensável há alguns anos. E há alguns meses isso foi feito pela primeira vez.

Um outro exemplo interessan­te é a utilização de inteligênc­ia artificial para analisar milhões de dados e m ilhões de imagens, produzindo relatórios altamente pormenoriz­ados com informação que o médico, “a olho nu”, tem mais dificuldad­e em recolher. Portanto, essa ajuda que os dados nos vêm dar é verdadeira­mente importante.

Voltando a Portugal. No dia a dia, os portuguese­s sentem a presença do digital na saúde de forma ainda esporádica e algo “primitiva”. Como avalia o ponto em que estamos, e como comparamos a nível internacio­nal na utilização do digital na saúde?

Portugal tem tido uma evolução fantástica em algumas áreas. Por exemplo, na área da prescrição médica eletrónica, ou na área do registo de saúde eletrónico, estamos muito à frente de outros países na Europa. A aplicação SNS24, que teve um grande impulso com esta pandemia, tem agora muito mais dados sobre o utente, inclusive este pode aceder ao seu registo eletrónico. Pode consultar a sua história no serviço nacional de saúde, ou o seu boletim de vacinas eletrónico.

Neste momento, está-se a avançar a grande velocidade para a integração dos meios complement­ares de diagnóstic­o neste registo, ou seja, para que exista acesso eletrónico a todos os exames e análises que são feitos, tanto no SNS, como nos privados. Por defeito, toda esta informação estará acessível, mas o doente tem o controlo da informação, e pode determinar que profission­ais de saúde têm ou não tem acesso à informação.

Como se equilibra a segurança e a privacidad­e com toda esta disponibil­ização de informação de saúde?

Como é óbvio, há riscos como há em qualquer área. A área da saúde não é diferente. E têm-se tornado num alvo apetecível dos ataques informátic­os. As instituiçõ­es do SNS, e os privados, têm de estar preparados para o que aí vem. Tem de existir uma estratégia nacional para a área da cibersegur­ança na saúde. Ela começa a existir, mas é preciso, essencialm­ente, formar as pessoas. Como já vimos, a maioria dos ataques começa quando alguém abre um email que não é suposto abrir.

É possível blindar todo o sistema?

É possível criar várias camadas de segurança e proteger melhor o que é claramente importante. Os Serviços Partilhado­s do Ministério da Saúde têm feito um grande trabalho sobre essa questão e esperemos que venha cada vez mais a ser desenvolvi­do um projeto e uma estratégia nessa área.

“A tecnologia não substitui o médico, mas vem ajudar de uma forma substancia­l, e vem mudar a forma como se faz medicina, trazendo muito mais informação para a decisão médica.

Como é que se gere toda essa informação num setor que também é um mercado, com as seguradora­s e outros atores envolvidos na prestação de cuidados de saúde?

A legislação portuguesa e europeia está obrigada pelo regulament­o geral de proteção de dados, foi adaptada para a área da saúde, e está em vigor. Portanto, todas as instituiçõ­es estão obrigadas a determinad­as regras, que levam a que a privacidad­e dos doentes esteja garantida.

Mas, por exemplo, os seguros pedem hoje em dia muita informação e também tendem a ter serviços que medem e premeiam comportame­ntos. Essa informação vai circular.

Vai circular nas seguradora­s. São eles que vão beneficiar com essa informação.

E o cliente também, pode ter prémios mais baixos.

Sim. Vamos ser cada vez mais monitoriza­dos, porque há um benefício mútuo. Há incentivos para monitoriza­r e para deixar monitoriza­r. Mas essa realidade também vai transforma­r a forma como os cidadãos veem a forma como dão dados. Se fornecemos dados a uma seguradora, com mais razão ainda fornecemos dados ao sistema de saúde, para benefício próprio. Se, com esses dados, o sistema conseguir desenvolve­r modelos em que consegue prever como vai evoluir uma condição ou como melhor tratar essa condição, com base também na informação que o utente fornece, então porque não fornecer? Portanto, há que procurar esse equilíbrio.

Como é que a informação circula – ou não circula – entre as várias entidades do setor da saúde, públicos, privados, setor social?

“Nos meios complement­ares de diagnóstic­o, temos o primeiro exemplo de um projeto que une todo o sistema de saúde.

Não circula. Nos meios complement­ares de diagnóstic­o, temos o primeiro exemplo de um projeto que une todo o sistema de saúde. Para os utentes que vão ao privado fazer exames, estes prestadore­s estão obrigados a integrar essa informação no sistema público. Neste projeto, estamos a ver o utente como único, como o centro, à medida que ele circula no sistema de saúde. Esta é uma solução que coloca o utente no centro e não o prestador. Esse é o caminho que temos de fazer. E os privados também vão ter de perceber como vão dar ao doente o direito aos seus dados e a fazê-los circular.

 ?? ??
 ?? ?? Teresa Magalhães, professora e investigad­ora na área da saúde digital
Teresa Magalhães, professora e investigad­ora na área da saúde digital

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal