O belo verão
Itália sempre foi um enigma de luz e sombras. Um belo e bem-disposto enigma, mas um enigma. Tem o Norte europeu, o Sul árabe, africano, grego, mediterrânico na sua essencialidade. Tem um património cultural único, uma complexa identidade linguística, uma economia dinâmica cercada pela informalidade e pelos circuitos paralelos do dinheiro, da influência e dos poderes ocultos. Cercada também por uma dívida pública, que representa 153% do PIB. Tem um Norte rico e um Sul pobre, subsidiado, com largos espaços de território subtraídos ao exercício da soberania própria de um Estado de direito. Tem a máfia e o Vaticano. Tem um sistema político em permanente erupção, como se fosse uma criação do Vesúvio ou do Etna, com um cadastro fenomenal de 67 governos desde a fundação, com o democrata-cristã Alcide De Gasperi, em 1946.
Tem um forte culto por líderes fortes. Pelo exercício da autoridade, como no caso de Mussolini. Pelo poder do dinheiro, Berlusconi, ou por uma inefável inteligência e capacidade de manobra política, como era o caso de Andreotti, Il Divo, genialmente representado no cinema por Toni Servillo, na maior criação de Sorrentino. Tem as belas divas, Loren, Vitti, Cardinale, Bellucci. Tem Mastroianni, claro, Toto, Lino Ventura, Visconti, Zurlini, Fellini. Itália tem também grandes escritores, alguns dos quais são ou foram implacáveis na dissecação da sua alma, como Pavese, de livros como o Belo Verão aos celebérrimos Trabalhar Cansa ou Ofício de Viver,e o incomparável Leonardo Sciascia, consciência moral da parte da nação que busca a decência na mina escura. Como Roberto Saviano, um monumento à coragem de escrever e publicar tudo o que nenhum italiano bem-sucedido, pelo cânone do dinheiro e do sucesso material, gosta de ler sobre o seu país.
Itália é representada por muitas réplicas desse país único e insubstituível que Garibaldi forjou à luz do implacável e realista cinismo lampedusiano, sobre o que se muda para que tudo fique na mesma. Uma das mais estimulantes das últimas décadas é a que foi laboriosamente tecida por Mário Draghi, um homem justamente providencial, que, juntamente com o presidente Sérgio Mattarella, lhe deu a dimensão, abandonada nos últimos 30 anos, de ser um país respeitado na Europa e no mundo. Draghi era a última hipótese de reabilitar o sistema político, de o resgatar das mãos dos corsários da Liga Norte, do oportunismo dos afilhados de Beppe Grillo, dos equilibrismos de uma esquerda geneticamente desunida e um bocado estúpida. Era a última hipótese de recolocar o país nos trilhos do rigor, da aplicação séria e rigorosa dos 200 milhões da bazuca europeia, de criar condições para uma indispensável regeneração ética e política das lideranças partidárias. A grande diferença do presente para os velhos caos italianos está no pagamento da fatura. Itália pode cair nas mãos da extrema-direita herdeira de Mussolini e da Liga Norte, hoje uma trincheira dominada pelo dinheiro russo, e com ela arrastar uma Europa ferida pela ausência de solidariedade e coesão. O caos italiano ameaça somar ao caos maior do inverno energético rigoroso que aí vem, à inflação galopante que está a engolir a economia mundial, a todas as consequências da guerra na Ucrânia. Ameaça implodir a Europa para gáudio do mastim russo, que vai fazendo contas aos estragos produzidos um pouco por todo o lado. Não tenhamos, por isso, grandes ilusões, no gozo deste belo verão português, suavemente entrecortado por uns banhos algarvios e a bravura dos intrépidos guerreiros, como Santos Silva, presidente do parlamento, ou o impagável Galamba, que nos protegem contra os desmandos da extrema-direita instalada na choldra política cá do burgo e da demagogia de uma empresa espanhola de energia. O que seria de nós sem estes bravos… Pois, não tenhamos ilusões, se não prevalecer o bom senso, a fatura italiana há de vir lá para o outono e também vamos pagá-la de alguma forma. Gozemos, portanto, o belo verão porque a nossa vida será tudo menos fácil nos tempos que estão para chegar. ●