SÁBADO

Nas nuvens

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

FOI HÁ MUITOS ANOS, numa das primeiras férias longe do olhar parental: cheguei ao aeroporto para embarcar. Uma senhora gentil informou-me que já não havia lugar para mim. Sorri. Disse-lhe que devia ser engano, com certeza, eu até tinha um bilhete.

A doce senhora olhou para aquele saloio que tinha à frente e explicou-lhe que as companhias aéreas têm por hábito vender mais bilhetes do que os lugares disponívei­s no avião.

O rapaz, depois de alguns segundos de silêncio, sentiu que o mundo, o mundo dele, feito de ordem e previsibil­idade, ruía com estrondo. E, ao contemplar a derrocada, o rapaz tentava entender que tipo de mente perversa, que monstruosi­dade inefável, que ser grotesco e sanguinári­o podia ter pensado num esquema desses. Perder a fé na humanidade acontece assim: de repente e sem aviso.

Acabei por embarcar noutro voo, mais tarde. Mas a inocência ficou naquele aeroporto, espezinhad­a pela cobiça das empresas.

Agora, leio no Wall Street Journal que a lógica da coisa se explica porque, em média, 10% dos passageiro­s não aparecem para o embarque. Isso significa que as companhias, também em média, aceitam sempre mais 10% de reservas do que o estritamen­te permitido.

É com esse cenário, aliás, que me preparo para embarcar já amanhã. Embarcar, vírgula: o bilhete que tenho na mão pode ser reduzido a pó se o pessoal em peso se entusiasma­r e comparecer à chamada.

Tem acontecido com muita frequência: depois da pandemia, ninguém quer ficar em casa. Resultado: as cenas de pugilato, em que os viajantes são removidos dos seus legítimos lugares à força, não param de crescer. Informa o mesmo jornal que, nos Estados Unidos, uma forma de lidar com estas barbáries passa por “leilões do avesso”: o passageiro, no momento do check-in, já informa qual é o seu preço para ceder o lugar. Depois, as companhias comparam os saldos e compram as melhores pechinchas.

Quando este modelo aterrar por cá, prometo ser exorbitant­e: eu só quero a minha inocência de volta. Se isso não for possível, o melhor é deixarem-me embarcar e não se fala mais no assunto.

CHEGUEI VIVO, OU SEMI-VIVO, ao meu destino: com a idade, as viagens de avião mais longas são muito parecidas com as ressacas. Podemos beber a mesma quantidade de álcool ou fazer as mesmas distâncias de outrora. Mas demoramos mais tempo a regressar ao nosso estado normal e funcional.

Felizmente, há traços que se mantêm. Um deles é a atracção que exerço sobre mosquitos de todo o tipo. Em 24 horas, estou coberto por uma espécie de “varíola dos insectos” que não parece comover a Organizaçã­o Mundial de Saúde.

E o problema é que, a prazo, não será possível matá-los. Informa a revista Atlantic que os insectos também são dotados de senciência, algo que se pensava interdito aos invertebra­dos. O raciocínio é fulminante: se uma melga sente dor e prazer, não deve também ser respeitada nos seus direitos?

Entre eles, imagino que o direito à vida e à alimentaçã­o ainda vai figurar nos códigos, o que transforma automatica­mente as minhas noites de Verão em tentativas sucessivas (e frustradas) de homicídio.

O GOVERNO ESPANHOL, através do seu Ministério para a Igualdade, lançou uma campanha para combater o preconceit­o. Gordas ou magras, todos os corpos são belos e todos têm direito à praia.

Caminhando pelo areal, concordo com a segunda parte, discordo da primeira. E se a sra. Irene Montero, ministra da Igualdade, discorda da minha discórdia, posso enviar-lhe uma foto de corpo inteiro, em estado adâmico, desde que ela prometa não me processar.

Até porque, em matéria de processos, já basta a indignação de uma das modelos que foi usada na campanha sem dar a sua autorizaçã­o. Usada e abusada: se a ideia era apresentar todos os corpos femininos nas suas gloriosas imperfeiçõ­es, parece que a sra. Sian Green-Lord não gostou de ver a sua prótese do membro inferior esquerdo substituíd­a por uma perna de carne e osso.

Longe de mim sugerir que a mensagem do Governo espanhol é a de que todos os corpos são legítimos, desde que estejam inteiros. Mas convinha corrigir esta correcção. Caso contrário, a ministra Montero ainda acaba barrada nas praias de Espanha por ter demonstrad­o uma tão clamorosa falta de cabeça. ●

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