Nas nuvens
FOI HÁ MUITOS ANOS, numa das primeiras férias longe do olhar parental: cheguei ao aeroporto para embarcar. Uma senhora gentil informou-me que já não havia lugar para mim. Sorri. Disse-lhe que devia ser engano, com certeza, eu até tinha um bilhete.
A doce senhora olhou para aquele saloio que tinha à frente e explicou-lhe que as companhias aéreas têm por hábito vender mais bilhetes do que os lugares disponíveis no avião.
O rapaz, depois de alguns segundos de silêncio, sentiu que o mundo, o mundo dele, feito de ordem e previsibilidade, ruía com estrondo. E, ao contemplar a derrocada, o rapaz tentava entender que tipo de mente perversa, que monstruosidade inefável, que ser grotesco e sanguinário podia ter pensado num esquema desses. Perder a fé na humanidade acontece assim: de repente e sem aviso.
Acabei por embarcar noutro voo, mais tarde. Mas a inocência ficou naquele aeroporto, espezinhada pela cobiça das empresas.
Agora, leio no Wall Street Journal que a lógica da coisa se explica porque, em média, 10% dos passageiros não aparecem para o embarque. Isso significa que as companhias, também em média, aceitam sempre mais 10% de reservas do que o estritamente permitido.
É com esse cenário, aliás, que me preparo para embarcar já amanhã. Embarcar, vírgula: o bilhete que tenho na mão pode ser reduzido a pó se o pessoal em peso se entusiasmar e comparecer à chamada.
Tem acontecido com muita frequência: depois da pandemia, ninguém quer ficar em casa. Resultado: as cenas de pugilato, em que os viajantes são removidos dos seus legítimos lugares à força, não param de crescer. Informa o mesmo jornal que, nos Estados Unidos, uma forma de lidar com estas barbáries passa por “leilões do avesso”: o passageiro, no momento do check-in, já informa qual é o seu preço para ceder o lugar. Depois, as companhias comparam os saldos e compram as melhores pechinchas.
Quando este modelo aterrar por cá, prometo ser exorbitante: eu só quero a minha inocência de volta. Se isso não for possível, o melhor é deixarem-me embarcar e não se fala mais no assunto.
CHEGUEI VIVO, OU SEMI-VIVO, ao meu destino: com a idade, as viagens de avião mais longas são muito parecidas com as ressacas. Podemos beber a mesma quantidade de álcool ou fazer as mesmas distâncias de outrora. Mas demoramos mais tempo a regressar ao nosso estado normal e funcional.
Felizmente, há traços que se mantêm. Um deles é a atracção que exerço sobre mosquitos de todo o tipo. Em 24 horas, estou coberto por uma espécie de “varíola dos insectos” que não parece comover a Organização Mundial de Saúde.
E o problema é que, a prazo, não será possível matá-los. Informa a revista Atlantic que os insectos também são dotados de senciência, algo que se pensava interdito aos invertebrados. O raciocínio é fulminante: se uma melga sente dor e prazer, não deve também ser respeitada nos seus direitos?
Entre eles, imagino que o direito à vida e à alimentação ainda vai figurar nos códigos, o que transforma automaticamente as minhas noites de Verão em tentativas sucessivas (e frustradas) de homicídio.
O GOVERNO ESPANHOL, através do seu Ministério para a Igualdade, lançou uma campanha para combater o preconceito. Gordas ou magras, todos os corpos são belos e todos têm direito à praia.
Caminhando pelo areal, concordo com a segunda parte, discordo da primeira. E se a sra. Irene Montero, ministra da Igualdade, discorda da minha discórdia, posso enviar-lhe uma foto de corpo inteiro, em estado adâmico, desde que ela prometa não me processar.
Até porque, em matéria de processos, já basta a indignação de uma das modelos que foi usada na campanha sem dar a sua autorização. Usada e abusada: se a ideia era apresentar todos os corpos femininos nas suas gloriosas imperfeições, parece que a sra. Sian Green-Lord não gostou de ver a sua prótese do membro inferior esquerdo substituída por uma perna de carne e osso.
Longe de mim sugerir que a mensagem do Governo espanhol é a de que todos os corpos são legítimos, desde que estejam inteiros. Mas convinha corrigir esta correcção. Caso contrário, a ministra Montero ainda acaba barrada nas praias de Espanha por ter demonstrado uma tão clamorosa falta de cabeça. ●