É a realidade, estúpido!
A ESQUERDA PENSA que a sua grande inimiga é a direita. Um erro. A principal inimiga da esquerda, como lembrava o saudoso Roger Scruton, é sempre a realidade.
Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o curioso caso de Marta Temido. No início, a senhora tinha um sonho: um SNS exclusivamente nas mãos do Estado e com profissionais de saúde fanaticamente devotados à causa, de preferência a ouvir o hino da Internacional Socialista dia e noite.
A realidade começou a sabotar o mundo encantado de Temido. Para começar, o SNS não dava para as encomendas sem a prestimosa ajuda dos privados. Os médicos e os enfermeiros, exaustos e mal pagos, não comiam ideologia nem pagavam a renda com declarações de amor ao socialismo. E os doentes, que deviam ser a prioridade das prioridades, continuavam sem assistência, a engordar listas de espera infames e sem um médico de família para os amparar.
Para agravar as coisas, veio a pandemia. E veio a reacção à pandemia, com a mobilização de todo o sistema para acorrer ao vírus. Resultado: as outras patologias continuaram sem vigilância ou tratamento, razão pela qual Portugal lidera o excesso de mortalidade na Europa. Em Inglaterra, corre neste momento uma discussão acesa sobre o assunto: será que os confinamentos provocaram mais mortes do que o vírus propriamente dito? E como foi possível a Downing Street ter acatado bovinamente as imposições dos cientistas sem pesar outras variáveis? Em Portugal, reina a santa paz dos cemitérios.
Perante este descalabro, a ministra chorava, insultava, ameaçava, prometia, filosofava. Mas, daquela cabeça, não saía uma reforma, uma medida, uma ideia singela capaz de estancar a decadência do SNS e de salvar as suas vítimas directas. Uma delas morreu esta semana, entre dois hospitais de Lisboa, com uma criança no ventre.
Mais relevante do que a demissão de Marta Temido foi a demissão de António Costa, que foi permitindo todos estes extremos de fanatismo e inaptidão como se fosse um turista a passear por São Bento. Os portugueses pagaram com doença e morte tamanha omissão.
ALGUÉM DIZIA que a verdadeira expressão de inteligência era a capacidade de manter duas ideias contraditórias na cabeça – e, apesar disso, continuar a funcionar. O historiador Duncan Simpson passa esse teste com distinção. Os portugueses foram vítimas da PIDE?
Claro que sim. Mas os portugueses também foram vítimas de outros portugueses, que mantiveram com a PIDE uma relação instrumental, interesseira e até filial. Vem tudo no ensaio “Tenho o prazer de informar o Senhor Director...’” Cartas de Portugueses à PIDE (1958 – 1968).
Dito assim, a coisa não devia espantar nenhum cristão: todas as ditaduras tiveram o respaldo voluntário de milhares ou milhões de anónimos, que espiavam e delatavam os vizinhos por razões múltiplas. Fervor ideológico, certamente, mas também por sentimentos menos nobres, como a inveja, o ressentimento e a proverbial necessidade de fazer pela vida. Por que motivo os portugueses haveriam de ser diferentes dos alemães, dos italianos ou dos russos?
E, no entanto, nas histórias tradicionais sobre o assunto, só parecia haver espaço para as vítimas e para os algozes. Não que eles não sejam importantes; claro que são. Mas deixar de lado a bufaria alegre dos que escreviam ao “senhor director” porque um qualquer rival estava a subir da vida é só ver metade do filme.
O mérito do estudo de Simpson está na capacidade de ressuscitar essas cartas “esquecidas” que pintam uma relação mais complexa e interactiva entre a sociedade portuguesa e a PIDE. Havia denúncias voluntárias. Petições. Candidaturas espontâneas. No fundo, a PIDE era para esta gente, consoante os gostos e as necessidades, um instrumento de vingança, uma organização de beneficência e um centro de emprego.
Mostrar isto em nada diminui a natureza ditatorial do Estado Novo. Pelo contrário: apenas comprova que a sua absurda duração também contou com um povo miserável (em vários sentidos da palavra) que manteve o regime a flutuar. ●