SÁBADO

É a realidade, estúpido!

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

A ESQUERDA PENSA que a sua grande inimiga é a direita. Um erro. A principal inimiga da esquerda, como lembrava o saudoso Roger Scruton, é sempre a realidade.

Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para o curioso caso de Marta Temido. No início, a senhora tinha um sonho: um SNS exclusivam­ente nas mãos do Estado e com profission­ais de saúde fanaticame­nte devotados à causa, de preferênci­a a ouvir o hino da Internacio­nal Socialista dia e noite.

A realidade começou a sabotar o mundo encantado de Temido. Para começar, o SNS não dava para as encomendas sem a prestimosa ajuda dos privados. Os médicos e os enfermeiro­s, exaustos e mal pagos, não comiam ideologia nem pagavam a renda com declaraçõe­s de amor ao socialismo. E os doentes, que deviam ser a prioridade das prioridade­s, continuava­m sem assistênci­a, a engordar listas de espera infames e sem um médico de família para os amparar.

Para agravar as coisas, veio a pandemia. E veio a reacção à pandemia, com a mobilizaçã­o de todo o sistema para acorrer ao vírus. Resultado: as outras patologias continuara­m sem vigilância ou tratamento, razão pela qual Portugal lidera o excesso de mortalidad­e na Europa. Em Inglaterra, corre neste momento uma discussão acesa sobre o assunto: será que os confinamen­tos provocaram mais mortes do que o vírus propriamen­te dito? E como foi possível a Downing Street ter acatado bovinament­e as imposições dos cientistas sem pesar outras variáveis? Em Portugal, reina a santa paz dos cemitérios.

Perante este descalabro, a ministra chorava, insultava, ameaçava, prometia, filosofava. Mas, daquela cabeça, não saía uma reforma, uma medida, uma ideia singela capaz de estancar a decadência do SNS e de salvar as suas vítimas directas. Uma delas morreu esta semana, entre dois hospitais de Lisboa, com uma criança no ventre.

Mais relevante do que a demissão de Marta Temido foi a demissão de António Costa, que foi permitindo todos estes extremos de fanatismo e inaptidão como se fosse um turista a passear por São Bento. Os portuguese­s pagaram com doença e morte tamanha omissão.

ALGUÉM DIZIA que a verdadeira expressão de inteligênc­ia era a capacidade de manter duas ideias contraditó­rias na cabeça – e, apesar disso, continuar a funcionar. O historiado­r Duncan Simpson passa esse teste com distinção. Os portuguese­s foram vítimas da PIDE?

Claro que sim. Mas os portuguese­s também foram vítimas de outros portuguese­s, que mantiveram com a PIDE uma relação instrument­al, interessei­ra e até filial. Vem tudo no ensaio “Tenho o prazer de informar o Senhor Director...’” Cartas de Portuguese­s à PIDE (1958 – 1968).

Dito assim, a coisa não devia espantar nenhum cristão: todas as ditaduras tiveram o respaldo voluntário de milhares ou milhões de anónimos, que espiavam e delatavam os vizinhos por razões múltiplas. Fervor ideológico, certamente, mas também por sentimento­s menos nobres, como a inveja, o ressentime­nto e a proverbial necessidad­e de fazer pela vida. Por que motivo os portuguese­s haveriam de ser diferentes dos alemães, dos italianos ou dos russos?

E, no entanto, nas histórias tradiciona­is sobre o assunto, só parecia haver espaço para as vítimas e para os algozes. Não que eles não sejam importante­s; claro que são. Mas deixar de lado a bufaria alegre dos que escreviam ao “senhor director” porque um qualquer rival estava a subir da vida é só ver metade do filme.

O mérito do estudo de Simpson está na capacidade de ressuscita­r essas cartas “esquecidas” que pintam uma relação mais complexa e interactiv­a entre a sociedade portuguesa e a PIDE. Havia denúncias voluntária­s. Petições. Candidatur­as espontânea­s. No fundo, a PIDE era para esta gente, consoante os gostos e as necessidad­es, um instrument­o de vingança, uma organizaçã­o de beneficênc­ia e um centro de emprego.

Mostrar isto em nada diminui a natureza ditatorial do Estado Novo. Pelo contrário: apenas comprova que a sua absurda duração também contou com um povo miserável (em vários sentidos da palavra) que manteve o regime a flutuar. ●

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