SÁBADO

“A FALTA DE INOVAÇÃO TECNOLÓGIC­A ATRASOU A DESCARBONI­ZAÇÃO DA ECONOMIA”

Vítor Santos, antigo presidente da ERSE e professor do ISEG, defende que a descarboni­zação da economia tem linhas de orientação bem definidas, mas o facto de no passado não existirem tecnologia­s possíveis atrasou este processo.

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A transição energética é um dos grandes temas da nossa geração, é crucial para o futuro de Portugal e do planeta e pode ser feita com benefícios económicos, ambientais e sociais. Vítor Santos, antigo presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energético­s (ERSE) entre 2006 e 2017, é o convidado de Pedro Mendonça Pinto no videocast Electric Summit.

Há muitas vozes que questionam o elevado custo de uma transição energética e a rapidez da sua aplicação para minimizar os impactos das alterações climáticas. O que sai mais caro: agir agora ou esperar para agir mais tarde?

É necessário agir já. Por um lado, existem estudos que demonstram inequivoca­mente que as alterações climáticas vão ter impactos cada vez mais negativos no futuro. Por outro lado, existem outros estudos que nos permitem chegar à conclusão de que a transição energética pode ser o “remédio” para minimizar os impactos negativos das alterações climáticas. Penso que temos todos a perceção muito clara de que os eventos climáticos extremos são cada vez mais comuns e têm impactos cada vez mais catastrófi­cos. No verão temos incêndios, no inverno temos inundações e não é um fenómeno apenas português, mas sim global. É mais expressivo nos países em desenvolvi­mento, que são muito responsáve­is pelas emissões CO2.

Que efeitos pode ter a transição energética na Europa?

No caso europeu, a transição energética pode ter um efeito extremamen­te positivo, uma espécie de “2 em 1”, não só na sustentabi­lidade, como também na redução da dependênci­a energética da Europa. Aquilo que está subjacente à transição energética é a utilização intensiva dos recursos endógenos naturais. Assim, a Europa ficará cada vez menos dependente das importaçõe­s de combustíve­is fósseis, petróleo e gás natural. No fundo, esta preocupaçã­o esteve sempre presente na Europa. Na prática, a questão da independên­cia energética foi um pouco ignorada e outros aspetos foram privilegia­dos. Estamos a pagar caro e a guerra na Ucrânia trouxe este tema mais ao de cima. As políticas consistent­es que têm existido na Europa enquanto incentivo para o desenvolvi­mento e concretiza­ção da transição energética têm contribuíd­o para a redução da utilização quer do gás natural, quer do petróleo.

Esta transição é benéfica, apesar do seu custo?

Baseado na história, penso que todas as transições energética­s acabaram por ter reflexos positivos nas sociedades e nas economias, e estou certo de que esta também o terá. No fim do dia, teremos uma sociedade mais descarboni­zada, uma reestrutur­ação económica e industrial que vai gerar novos produtos e novos modelos de negócios, e iremos contribuir para a melhoria do bem-estar das pessoas e para o cresciment­o económico. Portanto sim, a transição energética deve acontecer já e em força.

Para Portugal alcançar as metas estipulada­s no Pacto Ecológico Europeu, o país terá de sofrer grandes transforma­ções em matéria de energia, tornando-se mais sustentáve­l e mais inteligent­e. Estamos no bom caminho?

Portugal tem estado sempre, há muito tempo, na linha da frente em relação à política energética e isso é muito positivo. Primeiro, antecipámo­s o processo de liberaliza­ção, que foi extremamen­te importante, criámos as pré-condições propícias ao desenvolvi­mento da transição energética, como, por exemplo, a privatizaç­ão das empresas, a promoção da concorrênc­ia e a reforma do setor elétrico e gás natural. Relativame­nte ao setor elétrico, Portugal esteve muito bem com a promoção da eólica, continua a estar bem na promoção da solar fotovoltai­ca e temos no pipeline imensos projetos em curso. Tendo os países europeus chegado ao consenso de que as centrais a carvão deviam ser encerradas até 2030, Portugal antecipou-se e nem todos os países europeus o fizeram. Existem cerca de 320 centrais térmicas a carvão na Europa e menos de metade delas estão encerradas ou serão encerradas nos próximos tempos. Nesse aspeto, Portugal esteve à frente, mas apesar de termos começado bem, ainda há muito a fazer.

“As transições energética­s têm sempre presente a utilização de tecnologia­s disruptiva­s e, portanto, são fatores indutores de inovação.” Vítor Santos, antigo presidente da ERSE e professor do ISEG

Que medidas deveríamos adotar para garantir uma maior aceleração dos temas da transição energética?

A transição energética está a acontecer a velocidade­s diferentes, dependendo do tipo de energia. Há outros setores em que a descarboni­zação não está a decorrer ao mesmo ritmo, mas isso não tem a ver com a ausência de intervençã­o dos responsáve­is políticos, agora ou no passado. Para já, tem a ver com a inovação tecnológic­a, que ocorreu mais rapidament­e com algumas tecnologia­s de geração do que, por exemplo, com a possibilid­ade de utilizar a eletricida­de na mobilidade elétrica. Mas mesmo em relação a esse assunto, o programa nacional para a Mobilidade Elétrica, aplicado sobretudo aos veículos ligeiros, começou em 2011, logo a seguir à crise. E só no pós-crise é que os governos atuaram no sentido de criar as condições infraestru­turais. Estas incluíram postos de carregamen­to, subsídios, isenções fiscais e a União Europeia aprovou diretivas que permitiram fixar limites de emissões dos diferentes modos de transporte. A Comissão Europeia fez agora uma proposta de que os veículos de combustão interna devem deixar de ser produzidos até 2035. Há ainda muito a fazer no setor da mobilidade, pois os transporte­s geram emissões CO2 muito consideráv­eis. Contudo, isto não resulta da inação dos governos, mas sim do facto de ainda não existirem soluções tecnológic­as para resolver esse problema.

Como se desenrola o processo de descarboni­zação e quais as etapas que o país tem pela frente até completar o “phase out” dos combustíve­is fósseis?

Os dois setores de atividade mais importante­s são os transporte­s e a indústria. Relativame­nte aos transporte­s, em relação à mobilidade elétrica, mesmo relativame­nte aos ligeiros, tem de haver uma melhoria consideráv­el das baterias para que possam ser utlizadas em distâncias mais longas. Isto já está a acontecer, os carros permitem cada vez distâncias mais longas sem serem recarregad­os. Já se avançou muito e certamente vai-se resolver o problema utilizando a mobilidade elétrica. Relativame­nte aos transporte­s pesados, julgo que a mobilidade elétrica não será a solução – a solução será a utilização de hidrogénio através das células de combustíve­l que se configuram. A inovação tecnológic­a nessa área já está muito desenvolvi­da e penso que em breve teremos algumas soluções comerciais que estejam em paridade com o desempenho dos veículos que funcionam com a utilização de combustíve­is fósseis.

Em relação aos transporte­s marítimos e aéreos, a solução também será o hidrogénio?

O processo aqui vai ser mais longo, estamos ainda na fase de investigaç­ão e desenvolvi­mento e ainda não temos soluções comerciais eficientes. Mas sinceramen­te, há alguns anos não imaginava que pudéssemos ter os custos na geração solar fotovoltai­ca que temos hoje. Acredito que quando se afeta recursos à inovação, investigaç­ão e desenvolvi­mento, os resultados quase sempre acontecem, em todos os setores.

E na descarboni­zação da indústria?

Vai demorar o seu tempo, mas já existem soluções em cima da mesa e tudo passa um pouco pela utilização do hidrogénio. A descarboni­zação da indústria tem duas componente­s: a utilização da eletricida­de e do gás natural. Existem certos processos industriai­s em que a eletricida­de não é a solução mais eficiente, comparada, por exemplo, com o gás natural, e por outro lado há processos em que a utilização da eletricida­de não é sequer exequível. Neste momento, é utilizado muitas vezes o gás natural. E aqui o hidrogénio vai ter um contributo e pode atuar tendencial­mente até 2050 para a descarboni­zação total da indústria. Poderá haver processos industriai­s que tenham de recorrer à captura e armazename­nto do CO2 gerado nesses processos industriai­s, mas o hidrogénio será a solução para a indústria no futuro próximo.

E porque é que não se aplica já o hidrogénio?

O hidrogénio verde tem um custo bastante mais elevado do que o hidrogénio com base fóssil. Nos próximos anos, tem de se apostar fortemente na inovação tecnológic­a, de forma que sejam reduzidos os custos de produção por eletrólise do hidrogénio verde. Mas há aqui um problema de escala. Por um lado, as soluções tecnológic­as não são ainda eficientes, por outro lado, não há consumo nem procura suficiente que permitam a escala. E ter escala é muito importante na produção e utilização do hidrogénio. Os custos unitários associados a todos os segmentos da cadeia de valor do hidrogénio verde serão mais baixos quando a procura aumentar. A viabilizaç­ão do hidrogénio verde passa pela inovação e redução de custos de produção, incluindo os custos associados à cadeia de valor do hidrogénio (produção de eletricida­de com base em renováveis ou por eletrólise, armazename­nto, transporte e distribuiç­ão).

“Os custos unitários associados a todos os segmentos da cadeia de valor do hidrogénio verde serão mais baixos quando a procura aumentar.” Vítor Santos, antigo presidente da ERSE e professor do ISEG

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