ELETRICIDADE: MILHÕES EM AJUSTES DIRETOS
Nos primeiros meses do ano, câmaras e organismos do Estado adjudicaram dezenas de milhões sem concurso. Só a Infraestruturas de Portugal assinou um ajuste de 20 milhões.
Avolatilidade do mercado de energia está a ter uma consequência nos contratos de eletricidade assinados pela administração pública: um surto de ajustes diretos a empresas fornecedoras, que assim deixam de estar a competir entre si em concursos públicos.
A SÁBADO detetou já dezenas de procedimentos deste género. A justificação de câmaras municipais e institutos do aparelho do Estado é que, quando lançam um concurso público, não estão a conseguir definir um preço-base para ele.
O preço-base é o número mágico: é quanto a entidade pública considera (meditante uma série de procedimentos prévios) que vale o bem ou serviço e que está disposta a pagar por ele. Nenhuma adjudicação pode ser feita acima desse valor. Se todas as empresas respondem com um valor superior ao preço-base, não há concurso. Com os preços da eletricidade a mudar (para cima) desde o início do ano, é isso que está a acontecer. Outro fenómeno é as empresas não estarem sequer a ir a jogo, deixando os concursos desertos, ou quase.
Como as câmaras e os organismos do Estado não podem ficar sem energia, veem-se com um problema nas mãos. A solução são os ajustes diretos – que em situações normais não podem ir além dos €20 mil, mas que estão agora a chegar aos €20 milhões nos regimes de urgência.
Um exemplo é a Câmara Municipal das Caldas da Rainha. Segundo respondeu à SÁBADO o diretor-delegado José Manuel Moura, o concurso foi lançado em março para fornecimento durante um ano. Preço-base: €1.415.287. Só uma empresa respondeu, a Galp, propondo €2.752.162. A solução foi recorrer a um ajuste direto por €317.953 de apenas 90 dias, “na expectativa de a cada momento poder conseguir melhores preços de mercado”.
O ajuste foi feito à Iberdrola, “dado ser o atual fornecedor, evitando assim novas ligações à rede elétrica de serviço público, bem como a circunstância de os valores contratados terem ficado bem abaixo dos valores de mercado praticados à data”.
Algo semelhante se passou na Câmara do Seixal, que em agosto adjudicou €1,2 milhões à EDP por três meses de energia. A autarquia, em resposta à SÁBADO, diz que o lançamento do concurso “coincidiu com o período inicial de instabilidade do mercado, de grande aumento de preços e flutuação, tendo sido extremamente complicada a elaboração das peças processuais, especialmente ao nível da fixação do preço-base; para o que contribuiu o facto de o preço da energia estar hoje a ser cotado (pelas empresas comercializadoras) ao dia”.
Esta dificuldade, diz a câmara, inviabilizou que se procedesse a um novo concurso e adjudicação até 31 de julho (data em que terminava o contrato anterior) o que originou a urgência, e daí apareceu o ajuste direto. A autarquia diz que fez uma “consulta preliminar ao mercado” e endereçou depois o convite à empresa que apresentou o preço mais baixo, a EDP.
Em Cascais, havia um contrato em vigor até fevereiro de 2022 e por isso a câmara lançou um concurso no fim de 2021. Todas as em-
presas apresentaram um valor acima do preço-base, disse à SÁBADO o presidente, Carlos Carreiras. Em janeiro, já em urgência, convidou a Galp, a EDP e a Endesa para apresentarem proposta para seis meses (o preço mais baixo, €1.795.236, era da Endesa). A autarquia aproveitou os seis meses para lançar outro concurso, que viria a ser ganho pela Endesa. Só que “em sede de audiência prévia houve lugar a pronúncias”, o que arrastou a adjudicação até 28 de julho, e como por imperativos legais só poderia entrar em vigor a 11 de agosto e o contrato anterior terminava a 2 de agosto, a câmara ficaria às escuras vários dias. Solução: fazer um ajuste direto de 15 dias por €190.000 à Endesa, porque tinha “o preço mais baixo” e tinha o contrato em vigor, logo, condições técnicas para garantir a continuidade.
Interrupção na Carris
Em Pinhel, um contrato de €730.000 com a EDP teve antecedentes semelhantes, segundo detalhou o executivo à SÁBADO. “Inclusive, houve um procedimento em novembro de 2021 em que apenas o lote de Baixa Tensão Normal reuniu condições para a adjudicação da proposta da Endesa. No entanto, em dezembro, a empresa comunicou que não podia garantir a continuidade do procedimento.”
O mesmo tipo de problemas ocorreu na Maia e em Ílhavo. Nesta última, para evitar ficar sem luz, “não restou outra alternativa” a não ser adjudicar um ano de eletricidade à EDP por €1.500.000 por ajuste direto, segundo informou o presidente da câmara, João Campolargo.
A mesma “urgência imperiosa” tem sido invocada pela câmara de Aveiro desde janeiro: nove ajustes diretos com a EDP para energia nos candeeiros e edifícios municipais, num total de €1.269.748. Em resposta à SÁBADO, Ribau Esteves, o presidente, realçou a “elevada imprevisibilidade das tarifas de energia elétrica; de forma a manter os contratos de energia, efetuaram-se procedimentos por ajuste direto, com base em critério material, ao anterior fornecedor, EDP”.
A Carris teve outro problema, diz a empresa municipal de Lisboa. Tinha um contrato com a Iberdrola “cujo termo ocorreria a 29 de outubro de 2022”, mas a 30 de março, “sem que nada o fizesse prever”, recebeu “um pré-aviso de interrupção do fornecimento”. A empresa espanhola alegou que o contrato terminava a 30 de abril de 2022, “interpretação com a qual a Carris não se conforma”. A solução da Carris foi um ajuste de urgência, para cinco meses, que foi para a Endesa por mais de 1 milhão de euros. Quanto à Iberdrola, o litígio está “em fase negocial e a ser resolvido por via graciosa”.
A Infraestruturas de Portugal diz à SÁBADO que o seu ajuste direto de €20 milhões “salvaguardou os seus interesses” por ter sido a proposta mais barata que recebeu. Acrescenta que “a instabilidade dos mercados desaconselha a realização de contratos de longa duração” e que tem “em curso um concurso público para um período de três meses.” ●
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