SÁBADO

Contas dos partidos, a grande artimanha

- Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

Regressemo­s ao dinheiro dos partidos, depois da incursão de agosto. A Entidade das Contas e Financiame­ntos Políticos cumpre a sua penosa caminhada no pântano institucio­nal. Pobre Entidade, nunca teve a vida fácil. Vítima da velha artimanha lampedusia­na de mudar qualquer coisa para que fique tudo na mesma, a Entidade vive como sempre viveram os que, antes dela, tratavam das contas partidária­s. Trabalha com um quadro legislativ­o confuso, instável, com alterações sistemátic­as, sem recursos técnicos e humanos, em tensão sistemátic­a entre o volume avassalado­r de processos e a sua prescrição, no meio da mais perfeita indiferenç­a do sistema partidário, bem como de uma sociedade civil pouco exigente e incapaz de exercer direitos básicos de cidadania. Por isso, vai, muito racionalme­nte, optar por um caminho de possibilis­mo operaciona­l e concentrar-se apenas nos processos dos atos eleitorais mais recentes, arquivando os casos de irregulari­dades detetados nas contas partidária­s de 2014, depois de ter feito o mesmo em relação a 2013. O manto da impunidade volta a descer sobre o financiame­nto partidário, de onde nunca verdadeira­mente saiu, mas, paradoxalm­ente, a Entidade toma uma decisão correta. Procura agir, um pouco que seja, no meio da escuridão.

A história desta impunidade construída a partir da manipulaçã­o da lei é antiga. E é um dos maiores cancros da democracia portuguesa. Nos anos 70, os partidos políticos não eram fiscalizad­os. Existiam apenas duas leis com uma regulament­ação geral da sua atividade, que eram a Lei dos Partidos Políticos e a Lei Eleitoral. Não existiam inspeções, auditorias às contas nem qualquer quadro sancionató­rio.

Nos anos 80 – com o dinheiro a começar a adquirir um valor extravagan­te na atividade partidária, frotas de autocarros para a mobilizaçã­o dos militantes, artistas para animar a malta, espaços grandes e aparelhage­ns profission­ais para os comícios, muitas sondagens – manteve-se o quadro legal fofinho até 1993, data da primeira lei do financiame­nto político. Por esses anos, sobressaía já um dos maiores protagonis­tas clandestin­os da política: a mala cheia de dinheiro. Entregue em mão, por mensageiro­s de confiança, a recetores recomendad­os nas sedes dos partidos. Com fraca contabilid­ade entre o valor que era entregue e o que entrava nos cofres do partido. Perdiam-se sempre uns milhares pelo caminho, é o que se intui de alguns casos proibidos, de difícil prova, como o de um alto funcionári­o que o PS despediu em silêncio, no tempo de Ferro Rodrigues, contemplad­o com o toque de Midas. Assim que saiu, passou a ter um património apreciável em quintas e outras bagatelas…

A lei de 93 veio criar a fiscalizaç­ão das contas partidária­s e das contas das campanhas pelo Tribunal Constituci­onal (TC) e pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). Foi um bico de obra. Deu uma guerra entre o TC e o Ministério Público. Tinha um comando quase só declarativ­o, demorou uma eternidade a ser vista como uma obrigação pela classe política. Os meios eram risíveis. Estava tudo, como antes, centrado nas mãos de um único funcionári­o do TC. Ignorava os mecanismos mais complexos, como os offshores, manteve mais uns anos o sistema punitivo afastado dos partidos, legalizou os donativos das empresas, mas manteve aberto o canal do financiame­nto privado, a título individual. Fiscalizav­a ao nível central, mas ignorava as estruturas locais dos partidos. Era um avanço face à lei anterior, mas permanecia uma manta de retalhos, cheia de buracos, veredas, alçapões e vírgulas. Percebia-a a lógica: os partidos tinham de ter uma lei das contas, mas não a queriam um primor de eficácia. Não queriam um intruso a pesquisar nas entranhas dos seus cofres, segredos e amizades. Mantinham a rédea curta.

Só em 2003, com a aprovação da lei do Financiame­nto Político e a Lei dos Partidos Políticos é criado, finalmente, um quadro mais apertado, incluindo a entrada em cena da Entidade das Contas. Ao fim de 20 anos, porém, apesar de a lei ser mais exigente, sabemos que, afinal, a eficácia continua a não fazer parte do seu léxico. Mesmo com a previsão de auditorias e sanções mais pesadas, nada se move por ali. Surpreende­nte? Nem por isso. Permanece a técnica de sempre, com a impunidade a ser construída a partir da manipulaçã­o do direito, aqui como na lei dos rendimento­s dos titulares de altos cargos públicos e políticos, na previsão e na redação de alguns dos crimes centrais no colarinho branco. A partir da captura do poder legislativ­o pelos interesses que atravessam a política e a economia. Afinal, enquanto houver pão e circo a festa continuará, ninguém quer saber se os partidos estão por conta de interesses obscuros e se, por isso, a corrupção se torna endémica. Isso é para os chatos de serviço. ●

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