Contas dos partidos, a grande artimanha
Regressemos ao dinheiro dos partidos, depois da incursão de agosto. A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos cumpre a sua penosa caminhada no pântano institucional. Pobre Entidade, nunca teve a vida fácil. Vítima da velha artimanha lampedusiana de mudar qualquer coisa para que fique tudo na mesma, a Entidade vive como sempre viveram os que, antes dela, tratavam das contas partidárias. Trabalha com um quadro legislativo confuso, instável, com alterações sistemáticas, sem recursos técnicos e humanos, em tensão sistemática entre o volume avassalador de processos e a sua prescrição, no meio da mais perfeita indiferença do sistema partidário, bem como de uma sociedade civil pouco exigente e incapaz de exercer direitos básicos de cidadania. Por isso, vai, muito racionalmente, optar por um caminho de possibilismo operacional e concentrar-se apenas nos processos dos atos eleitorais mais recentes, arquivando os casos de irregularidades detetados nas contas partidárias de 2014, depois de ter feito o mesmo em relação a 2013. O manto da impunidade volta a descer sobre o financiamento partidário, de onde nunca verdadeiramente saiu, mas, paradoxalmente, a Entidade toma uma decisão correta. Procura agir, um pouco que seja, no meio da escuridão.
A história desta impunidade construída a partir da manipulação da lei é antiga. E é um dos maiores cancros da democracia portuguesa. Nos anos 70, os partidos políticos não eram fiscalizados. Existiam apenas duas leis com uma regulamentação geral da sua atividade, que eram a Lei dos Partidos Políticos e a Lei Eleitoral. Não existiam inspeções, auditorias às contas nem qualquer quadro sancionatório.
Nos anos 80 – com o dinheiro a começar a adquirir um valor extravagante na atividade partidária, frotas de autocarros para a mobilização dos militantes, artistas para animar a malta, espaços grandes e aparelhagens profissionais para os comícios, muitas sondagens – manteve-se o quadro legal fofinho até 1993, data da primeira lei do financiamento político. Por esses anos, sobressaía já um dos maiores protagonistas clandestinos da política: a mala cheia de dinheiro. Entregue em mão, por mensageiros de confiança, a recetores recomendados nas sedes dos partidos. Com fraca contabilidade entre o valor que era entregue e o que entrava nos cofres do partido. Perdiam-se sempre uns milhares pelo caminho, é o que se intui de alguns casos proibidos, de difícil prova, como o de um alto funcionário que o PS despediu em silêncio, no tempo de Ferro Rodrigues, contemplado com o toque de Midas. Assim que saiu, passou a ter um património apreciável em quintas e outras bagatelas…
A lei de 93 veio criar a fiscalização das contas partidárias e das contas das campanhas pelo Tribunal Constitucional (TC) e pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). Foi um bico de obra. Deu uma guerra entre o TC e o Ministério Público. Tinha um comando quase só declarativo, demorou uma eternidade a ser vista como uma obrigação pela classe política. Os meios eram risíveis. Estava tudo, como antes, centrado nas mãos de um único funcionário do TC. Ignorava os mecanismos mais complexos, como os offshores, manteve mais uns anos o sistema punitivo afastado dos partidos, legalizou os donativos das empresas, mas manteve aberto o canal do financiamento privado, a título individual. Fiscalizava ao nível central, mas ignorava as estruturas locais dos partidos. Era um avanço face à lei anterior, mas permanecia uma manta de retalhos, cheia de buracos, veredas, alçapões e vírgulas. Percebia-a a lógica: os partidos tinham de ter uma lei das contas, mas não a queriam um primor de eficácia. Não queriam um intruso a pesquisar nas entranhas dos seus cofres, segredos e amizades. Mantinham a rédea curta.
Só em 2003, com a aprovação da lei do Financiamento Político e a Lei dos Partidos Políticos é criado, finalmente, um quadro mais apertado, incluindo a entrada em cena da Entidade das Contas. Ao fim de 20 anos, porém, apesar de a lei ser mais exigente, sabemos que, afinal, a eficácia continua a não fazer parte do seu léxico. Mesmo com a previsão de auditorias e sanções mais pesadas, nada se move por ali. Surpreendente? Nem por isso. Permanece a técnica de sempre, com a impunidade a ser construída a partir da manipulação do direito, aqui como na lei dos rendimentos dos titulares de altos cargos públicos e políticos, na previsão e na redação de alguns dos crimes centrais no colarinho branco. A partir da captura do poder legislativo pelos interesses que atravessam a política e a economia. Afinal, enquanto houver pão e circo a festa continuará, ninguém quer saber se os partidos estão por conta de interesses obscuros e se, por isso, a corrupção se torna endémica. Isso é para os chatos de serviço. ●