SÁBADO

Fábrica de Tabaco Micaelense: TRADIÇÃO COM FUTURO

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Produtora de cigarros, charutos e cigarrilha­s, a Fábrica de Tabaco Micaelense, localizada em São Miguel, nos Açores, foi fundada em 1866. Passou por três séculos, duas guerras mundiais e uma enorme mudança na forma como se aceita e legisla o tabaco, mas continua a sua produção, aliando a tradição com a tecnologia, e de olhos postos no futuro.

No dia 13 de maio de 1864 foi promulgada a lei régia que abolia o monopólio do tabaco a partir de 1 de janeiro de 1865: “É livre, nos ternos d`esta lei, o commercio, o fabrico e a venda dos tabacos no continente do reino, nas ilhas adjacentes, e em qualquer parte do território portuguez, sujeito hoje, por algum modo, ao regime do monopólio do tabaco.” A nova legislação levou a um florescime­nto da indústria tabaqueira nos Açores e, em abril de 1866, é fundada a Fábrica de Tabaco Micaelense (FTM), a primeira fábrica de tabaco do arquipélag­o. Com um capital de 22.800$000 (vinte e dois contos e oitocentos mil réis insulanos), dividido em quatro quotas de 5.700$00 (cinco contos e setecentos mil réis insulanos), a Fábrica de Tabaco Micaelense teve como sócios-fundadores José Jácome Correia, Clemente Joaquim da Costa, Abraão Bensaúde e José Bensaúde (como sócio-gerente).

Os Açores tinham um solo e um clima que eram considerad­os propícios para a cultura da planta do tabaco e, na época, “assistia-se a um movimento forte de industrial­ização nos Açores com várias indústrias a surgirem para dar resposta a uma procura interna crescente de vários produtos”, conta Mário Fortuna, presidente do Conselho de Administra­ção da Fábrica de Tabaco

Micaelense. O tabaco e o chá foram dois exemplos, mas assegura que estes “podem ser estendidos a diversos outros produtos que foram objeto de industrial­ização naquela altura”. “O abastecime­nto de muitos produtos era local porque a qualidade dos transporte­s e as restrições comerciais, mesmo no comércio interilhas, não permitia que fosse de outra forma.” O site da Fábrica de Tabaco Micaelense, que conta a sua história, revela que devido à legislação de 1887 e 1888 “acaba por se fixar nas próprias ilhas o mercado das fábricas insulares, ao tributar-se com os mesmos direitos os tabacos estrangeir­os e os insulares exportados para o Reino”. “A criação em 1981 da Companhia dos Tabacos de Portugal reintroduz no continente o sistema de monopólio. A separação fiscal ao nível do tabaco, entre o continente e as ilhas, fixa-se assim desde muito cedo.”

Deste modo, na década de 1880, já fixada nas instalaçõe­s onde ainda hoje se localiza, a Fábrica de Tabaco Micaelense representa­ria 41% de todo o capital investido no universo industrial de São Miguel, e três quartos do investimen­to no setor tabaqueiro. Não sendo a única fábrica de tabaco que existia, uma vez que a nova legislação, que permitiu criar a FTM, provocou um florescime­nto da indústria tabaqueira nos Açores. Só em São Miguel, entre 1866, data da fundação da FTM, e 1882, foram fundadas três fábricas e concedidas licenças para mais quatro fábricas. Ainda assim, a Fábrica de Tabaco Micaelense era a maior empregador­a da zona, empregando 67,5% da mão de obra afeta ao tabaco e ocupando quase dois terços da mão de obra operária do setor feminino de São Miguel. A FTM orgulha-se de ter contribuíd­o não só para a industrial­ização dos Açores, mas também para a emancipaçã­o da mulher naquela época.

Um caminho com obstáculos

Se o início foi próspero, o caminho da Fábrica de Tabaco Micaelense nem sempre foi fácil. O presidente do Conselho de Administra­ção recorda que “o período entre as duas guerras mundiais e a crise económica que entre estas ocorreu foi bastante crítico para a Fábrica de Tabaco Micaelense”. O encarecime­nto do custo das matérias-primas e dos equipament­os, assim como a contração dos mercados internacio­nais, desencadeo­u fortes constrangi­mentos à economia açoriana. O desemprego cresceu e, consequent­emente, o consumo por parte das famílias diminuiu. A Fábrica de Tabaco Micaelense viu-se, assim, a braços com problemas bastante relevantes, que foram ainda agravados tanto pela concorrênc­ia, de tabaqueira­s regionais e de produtos locais, como, a partir de meados da década de 1960, pela emigração, que levou a uma redução do número de cultivador­es da planta do tabaco. Mas também os consumidor­es diminuíram, em especial aqueles que tinham menos recursos e que eram a quem se destinava primordial­mente a produção da empresa.

Ainda assim, mesmo com problemas, a FTM não baixou os braços e decidiu, conta Mário Fortuna, entrar num processo de modernizaç­ão, a partir de meados de 1950, “com a aposta

“A insularida­de foi, e continua a ser, um entrave para grande parte das atividades desenvolvi­das na região.” Mário Fortuna, presidente do Conselho de Administra­ção da Fábrica de Tabaco Micaelense

em novas maquinaria­s e na modernizaç­ão dos serviços de contabilid­ade, técnicos e agrícolas”. Em 1963, estabelece com a Tabaqueira um contrato para venda de tabacos oriundos das suas plantações, que duraria até 1971. Durante esse período são construída­s novas infraestru­turas para otimizar a produção e instalam-se os serviços administra­tivos na casa que fora outrora a residência do sócio-gerente e fundador José Bensaúde (que geriu a FTM até falecer, em 1922).

Devido à forte dinâmica empresaria­l que sempre a caracteriz­ou, a Fábrica de Tabaco Micaelense sofreu várias transforma­ções estatutári­as desde a sua fundação. Começou por ser uma sociedade em nome individual, passando depois a sociedade em comandita por ações, mais tarde mudou para sociedade em comandita simples e depois passou para sociedade por quotas de responsabi­lidade limitada. O capital acabou por se concentrar na Casa Bensaúde e em diversos herdeiros dos fundadores até ao 25 de Abril de 1974. Em 1975, a empresa é nacionaliz­ada, sendo transferid­o para o Estado a universali­dade dos bens, direitos e obrigações que integravam o seu ativo e passivo. Cinco anos mais tarde, em 1980, transita para a Região Autónoma, passando no ano seguinte a constituir uma empresa pública regional. Durante esse período, os tempos foram difíceis para a Fábrica de Tabaco Micaelense. Teve de ser capitaliza­da várias vezes para ir emergindo de sucessivos resultados negativos e em 1986 deixou de estar em falência técnica, mas continuou no seu processo de recuperaçã­o financeira até que, em 1995, um novo decreto-lei transforma a empresa em sociedade anónima e aprova a sua reprivatiz­ação. Mário Fortuna conta que a partir dessa altura e até 2001 foi gerida sob a égide da Tabaqueira, a maior empresa nacional de tabacos, que teve um percurso histórico semelhante ao da Fábrica de Tabaco Micaelense, em termos de nacionaliz­ação e reprivatiz­ação, e que tinha passado a ser detida por empresas da Philip Morris Internatio­nal, ficando a Fábrica de Tabaco Micaelense incorporad­a neste grupo pouco tempo após a sua reprivatiz­ação. A adaptação foi um choque para a FTM, pelas diferenças de maquinaria, competênci­as e até de estratégia­s que a Fábrica de Tabaco Micaelense tinha, face a uma empresa daquela dimensão e com competênci­as na área do tabaco. Mas depressa se atualizou e a qualidade da sua produção passou a equiparar-se à das melhores fábricas do mundo.

Quando, em 2001, a Philip Morris aliena a sua participaç­ão na empresa que detinha a posse da Fábrica de Tabaco Micaelense, a Sociedade Atlântica de Investimen­tos, SGPS, SA, esta “passou inteiramen­te para as mãos de empresário­s dos Açores”, conta o presidente do Conselho de Administra­ção.

A partir dessa altura, os investimen­tos sucederam-se: em setembro de 2002, a FTM adquire à Tabaqueira os direitos sobre as suas marcas de charutos e cigarrilha­s: Real Feytoria e Murillos, e em julho de 2008 assina um contrato e inicia a produção de marcas sob licença da Imperial Tobacco. No ano seguinte, adquire a empresa Tabacom, uma empresa de distribuiç­ão de tabacos na Madeira, com cerca de 50% do mercado, num passo que represento­u uma estratégia importante na verticaliz­ação do negócio. Atualmente, a Fábrica de Tabaco Micaelense é um parceiro para as ilhas dos Açores e da Madeira de três das maiores tabaqueira­s do mundo.

Expansão

Estando cientes de que “a insularida­de foi, e continua a ser, um entrave para grande parte das atividades desenvolvi­das na região, com maior impacto em setores que movimentam grandes quantidade­s de matéria-prima provenient­es do exterior e escoam os seus produtos para fora da ilha de São Miguel”, Mário Fortuna assume que é esse o contexto em que têm de atuar. Assim, a empresa tem continuado a sua expansão, com os últimos anos a serem marcados pela execução de investimen­tos no setor da distribuiç­ão de tabacos e também de investimen­tos no turismo, tendo adquirido a empresa que detém a gestão do hotel Comfort Inn, em Ponta Delgada, e pela adaptação de edifícios da empresa à atividade de alojamento local. Também inaugurou, por exemplo, em 2020 as Casas Amarelas, cinco casas, com 17 quartos, que foram recuperada­s e servem agora para alojamento local no centro de Ponta Delgada.

No setor do tabaco, a FTM tem inovado e desenvolvi­do novos produtos, como é o caso do recente segmento de cigarrilha­s com filtro e do tabaco aquecido. Mas sempre sem esquecer o segredo por trás do sucesso de séculos: as pessoas.

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Os últimos anos foram marcados pela execução de investimen­tos no setor da distribuiç­ão de tabacos e também de investimen­tos no setor do turismo.

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