A CRIANÇA MARILYN
Blonde, do australiano Andrew Dominik, que estreia no cinema em alguns países e na Netflix (incluindo Portugal) esta quarta-feira, 28, parte de um livro sobre Marilyn Monroe da norte-americana Joyce Carol Oates.
NO MAIS BELO TEXTO alguma vez escrito sobre Marilyn Monroe (1926-1962), A Beautiful Child, parte do livro de perfis e ensaios Música Para Camaleões, Truman Capote descreve um dia passado em Nova Iorque com a bomba sexual. É uma jornada melancólica, um passeio ao lado de uma criança frágil como jangada à deriva no rio Hudson. É o mais perto que um criador/confidente chegou da verdadeira natureza de Norma Jeane Mortenson, o nome de batismo da estrela Marilyn.
A jovem Norma Jeane foi uma vertigem de tragédias pessoais, de pai incerto, abandonada por Gladys Baker, a mãe esquizofrénica, empurrada de orfanatos para famílias de encolhimento, provavelmente abusada por um vizinho aos 8 anos, seguramente violada aos 12 por Erwin Goddard, o marido da sua guardiã legal, de casamento de conveniência aos 16 para evitar nova clausura, manipulada por quase todos os homens poderosos que encontrou.
Transformar-se-ia, contudo, numa mulher inteligente (basta ler algumas das entrevistas já como vedeta mundial), sagaz nos negócios (criou uma produtora, lutou com a Fox por
A história de Norma Jeane, que se transformou em ícone como Marilyn Monroe, foi feita de tragédias pessoais. Blonde explora-as de forma livre
melhores condições e papéis e ganhou) e de talento construído pelo instinto e por Lee Strasberg, seu mentor no Actor’s Studio (basta ver o timing cómico em Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder, e um punhado de cenas de Paragem de Autocarro de Joshua Logan ou de Os Inadaptados de John Huston, o canto de cisne, antes de morrer de uma overdose de barbitúricos aos 36 anos.
Blonde, do australiano Andrew Dominik, que agora estreia no cinema em alguns países e na Netflix (incluindo Portugal) na próxima quarta-feira, 28, é um relato muito livre da vida de Norma Jean/Marilyn, baseado num livro já de si ficcional da norte-americana Joyce Carol Oates, escritora ágil e cativante mas de quadros violentos e imagens mórbidas. É um projeto de vida de Dominik (percebe-se; os seus melhores filmes, Chopper e O Assassinato de Jesse James pelo cobarde Robert Ford, interrogam as fronteiras entre realidade e mito) embora, segundo os críticos que já viram a longa-metragem, com antestreia no último Festival de Veneza, a mulher e o ícone sejam reduzidos a vítimas.
O tom parece ser próximo do cinema de horror, feito de trauma e sevícias, com Marilyn a combater inutilmente o patriarcado de amantes, companheiros, coprotagonistas, deles dependendo – chama daddy a quase todos. Bilge Ebiri, crítico da Vulture, ligada à New York Magazine, diz mesmo que “por vezes, Blonde parece um matadouro observado do ponto de vista do animal”. As imagens, essas, mostram a cubana Ana de Armas capaz de encarnar a vulnerabilidade de Norma Jeane e o glamour de Marilyn. Sobrará a verdade do olhar do espectador. ●