AS COISAS QUE NUNCA MUDAM
Achuva caía toda romântica, mansa, como se não quisesse incomodar o vento, que aparecera com pressa para ir a algum lado naquele fim de tarde. Eu devia estar excecionalmente sensível porque reparei nisso em vez de reparar na turba vestida de verde e branco que se movimentava como um todo na minha direção a meio do jardim, quase no fim da minha corrida.
Comecei a ouvi-los ainda ao longe: tinham feito passes de morte e defesas que tinham valido os três pontos. Apesar da óbvia (e estridente) euforia, cumpriam também as suas funções como gestores financeiros e desportivos conscientes, discutindo, ainda na ressaca de uma grande vitória, as vendas e compras de jogadores necessárias para seguir na senda de vitórias. Estavam numa alegria só – mas estavam todos juntos. Como é enternecedora a ingenuidade do adepto de futebol, pensei.
Se não fosse também tonta pelo jogo, não teria percebido nada da conversa: que os tinham comido de cebolada e que não tinham tremido na base, diziam. Que aquela equipa era como uma família e que nunca tinham dito mal do Paulinho, atestavam. O jogo já tinha terminado há pelo menos 20 minutos mas eles tinham conversa para duas semanas – a gabarolice ainda agora estava a engrenar e ninguém
O JOGO TINHA TERMINADO HÁ 20 MINUTOS MAS ELES TINHAM CONVERSA PARA DUAS SEMANAS – A GABAROLICE AINDA ESTAVA A ENGRENAR
os ia impedir de explorar aquele tema até ao fim, até não haver mais uma banalidade para dizer.
Muitos daqueles com quem me cruzava eram millennials – o que quer dizer que na conta da vida já levam ataques terroristas, crises financeiras, uma pandemia e uma guerra, o que quer também dizer que sabem que o mundo está sempre a mudar e não necessariamente para melhor. Que um dia se está em cima e no outro em baixo. Que não é boa ideia sentarmo-nos na janela se o nosso anjo da guarda estiver de folga. Que o ser humano, na verdade, está para acabar.
Por serem millennials que gostam de futebol, eles sabem que o futebol ainda é das poucas certezas que têm – é que se o preço da carne, do peixe e do óleo ainda não parou de subir, o do cachecol que levam ao pescoço não sofre com a inflação: são sempre 5 euros certos contra a aflição. ●