AMOR, MODOS DE USAR
A vanguardista chinesa Can Xue faz em ficção o que atribui ao amor: uma performance radical, sobre uma teia de aranha.
assegura que nunca baseia as suas histórias em conceitos: só em emoções. Mas que emoções? As que definem o pós-modernismo: intrincadas, nebulosas, muitas vezes em implosão? Ou as sentidas por todos os seres humanos, em todos os tempos, muitas vezes de forma romanticamente suicidária?
Após ter publicado três romances, 50 novelas e cerca de 120 contos, Can Xue (pseudónimo de Deng Xiaohua, n. 1953) é, segundo vaticínio de Susan Sontag, a única possível candidata chinesa a um Nobel da Literatura. O Amor no Novo Milénio, romance finalista do Booker 2019, recém-editado com tradução de Hélder Moura Pereira, mostra em ação o seu método modernista puro: “Solto as emoções por completo. Volto-me para o abismo escuro da consciência e mergulho nele, e, na tensão entre essas duas forças, construo as [minhas] tramas fantásticas e idealistas. Acho que as pessoas que sabem escrever como eu escrevo devem possuir uma imensa energia primitiva e um espírito fortemente lógico.”
Filha de jornalistas perseguidos como opositores ao regime comunista, Can Xue passou fome extrema na infância, contraiu tuberculose na adolescência e só pôde concluir o ensino primário. Depois, trabalhou numa fábrica e montou uma pequena alfaiataria na cidade natal de Changsha, província de Hunan.
Aos 30 anos, começou a escrever, influenciada por Dante, Kafka e Borges (veio a dedicar-lhes ensaios críticos). Tida como vanguardista, possui, antes, uma voz muito própria, que descreve como “uma planta estrangeira a crescer no solo de quinhentos mil anos de história”.
Em certo passo de O Amor no Novo Milénio, o operário Wei Bo, que mais tarde agirá
Este O Amor no Novo Milénio, romance finalista do Booker 2019, foi agora editado por cá com tradução de Hélder Moura Pereira
de modo a ser preso e “reeducado”, questiona-se: “Como é possível transformar-me em alguém diferente daquilo que sou?” A pergunta está no centro da composição (nunca moral ou judicativa) de cada figura desta narrativa trágica, que, aos solavancos, revela a sua intimidade e interações.
O cenário é uma pequena cidade, infestada de informadores e maquinações, mas também de subterrâneos e escapatórias à realidade. Aqui, há mulheres que, em fuga ao trabalho na fábrica de algodão e para tomarem a vida nas próprias mãos, se tornam prostitutas, e há homens que gravitam em torno delas como traças vesgas.
A quase todos ocorrem metáforas profundas e acontece sonharem, de olhos abertos, com redenções afetivas ou o regresso a uma pura natureza ou ascendência rural. Ler Can Xue é como seguir um trilho quase apagado de magia no brutalismo do desejo por amor neste novo milénio. ●