SÁBADO

Cabeças iluminadas

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

NO FUNERAL de Isabel II consolou ver algumas cabeças iluminadas a recomendar juízo aos britânicos. Não saberão eles que a monarquia é uma coisa primitiva, que não dá saúde a ninguém?

Um dos casos mais notáveis, e mais divertidos, foi o de António Filipe, do PCP. Em artigo para o Expresso,o ex-deputado teceu loas ao princípio republican­o e destilou o seu ódio à “pérfida” Albion.

Que ingratidão! Não saberá o senhor ex-deputado que, sem a “pérfida” Albion, jamais o fundador da sua seita teria tido paz e sossego para escrever as tábuas da lei comunista? Eu, se fosse o dr. António Filipe, não seria tão severo e pelo menos abriria uma excepção para elogiar as magníficas salas de leitura do Museu Britânico.

Mas não há apenas ingratidão em António Filipe; há também confusão em quantidade­s generosas. Nas palavras do ex-deputado, “vejo com alguma perplexida­de que se admita no século XXI que o acesso a cargos políticos, e por maioria de razão à posição de Chefe de Estado, com mais ou menos poderes, tenha carácter vitalício”. A sério, dr. António Filipe?

Ninguém diria. Sobretudo se nos lembrarmos que os regimes comunistas sempre se assumiram como “monarquias de politburo”, em que a mudança da guarda só ocorria com a morte do ditador.

Assim foi com Lenine. Assim foi com Estaline. Assim foi com Brezhnev. Khrushchev é uma excepção – e Andropov e Chernenko nem chegaram a aquecer o lugar, tal como Malenkov, embora os dois primeiros só tenham sido removidos do trono com a morte.

De resto, e para nos ficarmos em ditaduras comunistas que se mantêm à tona (digamos assim), Cuba teve Fidel Castro durante 57 anos; depois, a coroa e o ceptro passaram para o irmão. Nada que se compare com a Coreia do Norte, eu sei, que pertence à dinastia Kim já lá vão 74 anos.

O dr. António Filipe pode fazer juras de amor à alternânci­a republican­a. Mas, a julgar pela ideologia que professa, eu diria que ele está mais próximo do princípio monárquico do que imagina. A grande diferença é que os reis que ele venera têm currículos bastante mais sangrentos do que as monarquias constituci­onais que deplora – um argumento de peso para o qual Isabel II, hélas, não tem defesa

A TRAGÉDIA da escravatur­a costuma preencher a retórica política contemporâ­nea. Mas há algo estranho nessa retórica: ao mesmo tempo que se fala dos crimes do passado (e muito bem), os crimes do presente nunca merecem a mesma atenção (e muito mal). Será esquecimen­to? Ignorância? Uma mistura de ambos?

Recentemen­te, a ONG Walk Free divulgou números que arrepiam qualquer cristão. Nos últimos 5 anos, o mundo adicionou à factura da escravatur­a moderna mais de 10 milhões de escravos, ou seja, o equivalent­e à população portuguesa em peso. São agora 49,6 milhões, forçados a trabalhar nos campos, nas pedreiras, nas fábricas – ou, então, forçados a casar, embora seja mais rigoroso escrever forçadas a casar. E onde se encontram esses escravos?

Na Ásia. No Pacífico. Nos países árabes. Em África. Também na Europa e nas Américas. Em toda a parte, talvez porque a exploração do homem pelo homem, para citar essa expressão clássica, é uma constante universal.

E, no entanto, lendo a nossa imprensa, sobretudo aquela que mais tempo dedica à história negra do tráfico, há um silêncio sepulcral sobre estes números. Não há uma notícia. Uma opinião. Uma indignação. Nem sequer uma nota de pé de página. Como se esta escravatur­a não fosse a escravatur­a que mais interessa.

É pena. Os crimes do passado já estão consumados; mas é sempre possível denunciar os crimes do presente e, quem sabe, ajudar a combatê-los. Verdade que os criminosos actuais não se encaixam no figurino tradiciona­l – homens brancos, ocidentais e imperialis­tas. Mas isso não deve ser motivo para os discrimina­rmos. ●

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