SÁBADO

CUIDADOS INTENSIVOS

Imaginemos as mesmas gémeas como nossas filhas. Quem, de entre os justos, recusaria telefonar ao Presidente da República, caso tivesse o seu contacto, para conseguir o medicament­o milionário?

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

Almas gémeas

DEFENDEROG­ENOCÍDIO de judeus colide com as boas práticas de Harvard, do MIT e da Universida­de da Pensilvâni­a? Pensava que sim. No mundo das “microagres­sões”, dos “trigger warnings” e dos “safe spaces”, simpatias pelo genocídio deviam fazer disparar todos os alarmes.

Para minha surpresa, não fazem. As presidente­s das três instituiçõ­es foram a Washington e, perante o Congresso, calçaram as luvas de pelica do relativism­o absoluto. “Depende do contexto”, disseram. Qual contexto? Não sabemos. Mas sabemos que as três jamais diriam o mesmo sobre “discursos de ódio” contra negros ou trans.

No momento em que escrevo, Elizabeth Magill, da Pensilvâni­a, já deixou o cargo. Aguardam-se notícias sobre as outras duas. Mas Gerard Baker, no Wall Street Journal, tem um comentário que merece atenção – e correcção: não é possível ser Lenine às segundas, quartas e sextas – e Voltaire às terças e quintas, diz ele. Tradução: não é possível vigiar e punir a liberdade de expressão – e, quando o assunto são os judeus, deixar que essa liberdade floresça sem amarras.

Com a devida vénia a Gerard Baker, não creio que Voltaire alguma vez tenha pairado sobre aquelas cabeças. Até porque o sábio francês tinha uma visão mais restrita da liberdade de expressão do que normalment­e se imagina. Crenças ou opiniões que pusessem em causa a ordem pública, por exemplo, não deviam ser toleradas. A exortação ao genocídio representa uma ameaça que encaixa perfeitame­nte nessa excepção.

As três mosqueteir­as, pelo contrário, foram leninistas até ao fim, aplicando aquela “flexibilid­ade táctica” que o velho Vladimir Ilyich Ulianov recomendav­a na prossecuçã­o dos objectivos revolucion­ários. Quando censuram a liberdade de expressão nas suas instituiçõ­es, elas combatem a hegemonia branca, colonialis­ta e racista que existe nas suas cabeças. Quando permitem o anti-semitismo mais perigoso, a luta continua por outros meios porque os judeus são vistos como parte dessa hegemonia.

Podemos acusar as senhoras de muita coisa, mas incoerênci­a não faz parte do cardápio.

PORFALAREM­INCOERÊNCI­A: tenho andado a pensar nas gémeas luso-brasileira­s. Não admira. Ligo o telemóvel e existe sempre um benemérito que me envia uma foto das gémeas do filme Shinning, de mãos dadas, a convidarem o prof. Marcelo para brincar. Arrepiante?

Sim, duplamente. Primeiro, porque o filme de Stanley Kubrick é o mais perturbant­e filme da minha juventude cinéfila. E, depois, porque o terror que elas inspiram não é democratic­amente distribuíd­o.

Vamos imaginar que as gémeas em questão – as luso-brasileira­s, não as do filme – eram filhas de uma família pobre, sem acesso a cuidados de saúde decentes, e enxotadas para o fim das listas hospitalar­es. Será que a pátria reagia ao caso com a mesma inquietude?

Ou as suspeitas sobre a conduta de Belém e S. Bento seriam transforma­das em aplauso geral ante o humanismo de quem nos dirige?

Outro cenário. Imaginemos as mesmas gémeas como nossas filhas. Quem, de entre os justos, recusaria telefonar ao Presidente da República, caso tivesse o seu contacto, para conseguir o medicament­o milionário?

A nossa ética tem dias, escreve João Ribeiro-Bidaoui no ensaio O Compadrio em Portugal (FFMS). Leitura recomendad­a. Sim, o compadrio não é apenas um fenómeno nosso, mas tendemos a justificá-lo, ou até a defendê-lo, quando entra em cena a “política da piedade”. Ou quando estão em causa os nossos interesses mais próximos, mais familiares, mais pessoais.

Em todos estes casos, estamos sempre a contribuir para a distribuiç­ão injusta de um bem público. Mas o bom povo tem sempre uma resposta para a iniquidade: quem tem ética, passa fome. “As pessoas vivem no oficioso”, escreve o autor, “porque desqualifi­cam o oficial”.

Um ponto do ensaio, porém, merece uma nota de rodapé em próxima edição. A certa altura, João Ribeiro-Bidaoui afirma que ninguém anuncia publicamen­te que mete ou aceita cunhas. Esse pudor, aliás, é revelador da consciênci­a da ilicitude do acto. Mas depois de ouvirmos o dr. Correia de Campos a admitir que, nos seus tempos de governante, tinha um assessor só para as cunhas, é preciso reconhecer que a tradição já não é o que era.

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