CUIDADOS INTENSIVOS
Imaginemos as mesmas gémeas como nossas filhas. Quem, de entre os justos, recusaria telefonar ao Presidente da República, caso tivesse o seu contacto, para conseguir o medicamento milionário?
Almas gémeas
DEFENDEROGENOCÍDIO de judeus colide com as boas práticas de Harvard, do MIT e da Universidade da Pensilvânia? Pensava que sim. No mundo das “microagressões”, dos “trigger warnings” e dos “safe spaces”, simpatias pelo genocídio deviam fazer disparar todos os alarmes.
Para minha surpresa, não fazem. As presidentes das três instituições foram a Washington e, perante o Congresso, calçaram as luvas de pelica do relativismo absoluto. “Depende do contexto”, disseram. Qual contexto? Não sabemos. Mas sabemos que as três jamais diriam o mesmo sobre “discursos de ódio” contra negros ou trans.
No momento em que escrevo, Elizabeth Magill, da Pensilvânia, já deixou o cargo. Aguardam-se notícias sobre as outras duas. Mas Gerard Baker, no Wall Street Journal, tem um comentário que merece atenção – e correcção: não é possível ser Lenine às segundas, quartas e sextas – e Voltaire às terças e quintas, diz ele. Tradução: não é possível vigiar e punir a liberdade de expressão – e, quando o assunto são os judeus, deixar que essa liberdade floresça sem amarras.
Com a devida vénia a Gerard Baker, não creio que Voltaire alguma vez tenha pairado sobre aquelas cabeças. Até porque o sábio francês tinha uma visão mais restrita da liberdade de expressão do que normalmente se imagina. Crenças ou opiniões que pusessem em causa a ordem pública, por exemplo, não deviam ser toleradas. A exortação ao genocídio representa uma ameaça que encaixa perfeitamente nessa excepção.
As três mosqueteiras, pelo contrário, foram leninistas até ao fim, aplicando aquela “flexibilidade táctica” que o velho Vladimir Ilyich Ulianov recomendava na prossecução dos objectivos revolucionários. Quando censuram a liberdade de expressão nas suas instituições, elas combatem a hegemonia branca, colonialista e racista que existe nas suas cabeças. Quando permitem o anti-semitismo mais perigoso, a luta continua por outros meios porque os judeus são vistos como parte dessa hegemonia.
Podemos acusar as senhoras de muita coisa, mas incoerência não faz parte do cardápio.
PORFALAREMINCOERÊNCIA: tenho andado a pensar nas gémeas luso-brasileiras. Não admira. Ligo o telemóvel e existe sempre um benemérito que me envia uma foto das gémeas do filme Shinning, de mãos dadas, a convidarem o prof. Marcelo para brincar. Arrepiante?
Sim, duplamente. Primeiro, porque o filme de Stanley Kubrick é o mais perturbante filme da minha juventude cinéfila. E, depois, porque o terror que elas inspiram não é democraticamente distribuído.
Vamos imaginar que as gémeas em questão – as luso-brasileiras, não as do filme – eram filhas de uma família pobre, sem acesso a cuidados de saúde decentes, e enxotadas para o fim das listas hospitalares. Será que a pátria reagia ao caso com a mesma inquietude?
Ou as suspeitas sobre a conduta de Belém e S. Bento seriam transformadas em aplauso geral ante o humanismo de quem nos dirige?
Outro cenário. Imaginemos as mesmas gémeas como nossas filhas. Quem, de entre os justos, recusaria telefonar ao Presidente da República, caso tivesse o seu contacto, para conseguir o medicamento milionário?
A nossa ética tem dias, escreve João Ribeiro-Bidaoui no ensaio O Compadrio em Portugal (FFMS). Leitura recomendada. Sim, o compadrio não é apenas um fenómeno nosso, mas tendemos a justificá-lo, ou até a defendê-lo, quando entra em cena a “política da piedade”. Ou quando estão em causa os nossos interesses mais próximos, mais familiares, mais pessoais.
Em todos estes casos, estamos sempre a contribuir para a distribuição injusta de um bem público. Mas o bom povo tem sempre uma resposta para a iniquidade: quem tem ética, passa fome. “As pessoas vivem no oficioso”, escreve o autor, “porque desqualificam o oficial”.
Um ponto do ensaio, porém, merece uma nota de rodapé em próxima edição. A certa altura, João Ribeiro-Bidaoui afirma que ninguém anuncia publicamente que mete ou aceita cunhas. Esse pudor, aliás, é revelador da consciência da ilicitude do acto. Mas depois de ouvirmos o dr. Correia de Campos a admitir que, nos seus tempos de governante, tinha um assessor só para as cunhas, é preciso reconhecer que a tradição já não é o que era.