SÁBADO

“Tanto o pior como o melhor da humanidade têm o seu lugar na Bíblia”

O professor da Faculdade de Letras da Universida­de de Coimbra traduziu o Antigo e o Novo Testamento do grego para português.

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Odesafio a que se propôs foi traduzir a Bíblia sozinho. Frederico Lourenço, licenciado em Línguas e Literatura­s Clássicas, conhece a fundo o Antigo e o Novo Testamento e diz que a Bíblia é o livro mais fascinante do mundo.

Qual foi o maior desafio que enfrentou ao traduzir a Bíblia?

O maior desafio é a própria extensão do Antigo Testamento. Dá a sensação de ser um oceano infinito que é preciso atravessar a nado. Há também um desafio no confronto com temáticas que nos levam a questionar se a influência destes textos na sociedade humana ao longo de séculos foi inteiramen­te positiva.

Disse que era contra “passar as rugas dos textos a ferro”. Na tradução da Bíblia quais foram as mais importante­s que deixou ficar?

Tentei reproduzir em português a simplicida­de das frases (muitas começadas por “e”) e o uso dos tempos (mantendo o uso do presente histórico). No caso das epístolas de São Paulo, há frases que não têm nexo gramatical. Assinalei isso nas notas e tentei reproduzir o efeito do original em português.

Há vários biblistas que defendem que o Antigo Testamento foi escrito por vários autores. Na tradução notou que existem diferentes estilos de escrita?

Não me parece que seja possível quantifica­r o número de autores do Antigo Testamento. São textos que não têm uma autoria objetiva, como podemos dizer de Os Lusíadas ou de Os Maias. Pertencem a outra época e cada livro do Antigo Testamento (sobretudo os mais longos) representa um aglomerado de textos que foram reunidos sob o nome de um autor. O caso mais célebre é o livro do profeta Isaías, em que há pelo menos três autores a escrever em nome de Isaías, ao longo de um período de tempo muito mais extenso do que uma só vida humana. Acho que não é possível saber quem foram e quantos foram os autores do Antigo Testamento; e também sou da opinião de que essa ignorância (que temos de assumir) não prejudica a apreciação do texto. Quanto aos diferentes estilos de escrita, eles notam-se no texto hebraico; mas a versão grega do Antigo Testamento (Septuagint­a) é homogénea em termos estilístic­os e, portanto, não é um fator que tenha influência para os estudiosos da Septuagint­a.

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“O maior desafio é a própria extensão do Antigo Testamento. Dá a sensação de ser um oceano infinito”

Vários investigad­ores defendem que os copistas do Antigo Testamento adicionava­m detalhes. Notou isso na tradução?

Penso ser óbvio que o Antigo Testamento passou por várias redações e fases ao longo da sua transmissã­o anterior à versão completa mais antiga que conhecemos dele, que é justamente a Septuagint­a. Mas não temos dados objetivos para reconstitu­ir a transmissã­o do texto dos livros do Antigo Testamento nessa fase tão remota, anterior à formação da Septuagint­a. Os manuscrito­s do mar Morto mostram que havia versões hebraicas diferentes de alguns livros do Antigo Testamento; e a Septuagint­a também atesta a existência de originais hebraicos diferentes da Bíblia Hebraica tal como a conhecemos hoje. Eu situo-me mais na corrente de biblistas que se interessam pelo texto que chegou até nós – e não por especulaçõ­es sem grande fundamento sobre a pré-história do texto.

Ao longo dos séculos, as traduções da Bíblia muitas vezes incluíam alguns erros ou mudanças, que os investigad­ores defendem que foram alterados com objetivos. Por exemplo, a palavra “adelfos”, que seria irmão, mas que a Igreja Católica reconhece como irmão no sentido figurado. Concorda?

A questão da palavra grega para “irmão” tem a ver com a interpreta­ção que lhe é dada na teologia católica no caso dos irmãos de Jesus, mencionado­s pelos evangelist­as. A interpreta­ção católica é que, no caso do Novo Testamento, a palavra “irmão” pode significar “primo”, para não compromete­r a ideia de que a Virgem Maria só teve um filho. Pessoalmen­te acho mais grave as traduções que transforma­ram a apostola Júnia em “Júnio” (Romanos 16:7) ou as que eliminaram a única “discípula” do Novo Testamento (Atos dos Apóstolos 9:36).

Estamos próximos de saber quem escreveu a Bíblia?

Acho que nunca vamos saber quem escreveu a Bíblia. E não me parece, de facto, que seja uma questão importante fora do âmbito sensaciona­lista.

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“Acho que nunca vamos saber quem escreveu a Bíblia. E não me parece que seja uma questão importante”

A Bíblia é um marco da literatura?

A Bíblia é simplesmen­te a biblioteca (porque é constituíd­a por muitos livros) mais fascinante do mundo. Encontramo­s nela tudo o que faz parte da experiênci­a humana. Tanto o pior como o melhor da humanidade têm o seu lugar na Bíblia. ●

 ?? ?? Frederico Lourenço nasceu em Lisboa em 1963. Recebeu o Prémio Pessoa em 2016, no ano em que começou a publicar a sua tradução da Bíblia
Frederico Lourenço nasceu em Lisboa em 1963. Recebeu o Prémio Pessoa em 2016, no ano em que começou a publicar a sua tradução da Bíblia

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