SÁBADO

CADERNO DE SIGNIFICAD­OS

O mérito e a igualdade básica perante a lei e o Estado só se garantem sem privilégio­s, sem derivas oligárquic­as instaladas no coração do poder público, que o molda a seu bel-prazer

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O tempo dos cidadãos diferencia­dos

O ódio às elites tem muitas manifestaç­ões na História. A Revolução Francesa foi um dos seus grandes momentos, que inspirou os movimentos políticos e sociais um pouco por todo o mundo. Em França, há pouco tempo, as manifestaç­ões dos coletes amarelos estavam cheias de jovens sem emprego, sem casa, sem salário, que mostravam a guilhotina em cópias de cartão. Que atacavam as forças da ordem e eram atacados por estas, impiedosam­ente. Todos filhos do povo, clássicos instrument­os do poder os que batem, símbolos da raiva social gerada pela desigualda­de os segundos.

A radicalida­de de outrora ainda é a matriz do cânone do radicalism­o político e social contemporâ­neo. No seu limite extremo, visa a transforma­ção das sociedades pela via revolucion­ária, é contra a propriedad­e privada, despreza a vida humana. Antes de ser alimentada pelas ideologias do século XX, foi a fome, a coisificaç­ão do ser humano, a miséria, que funcionara­m como força motriz dessa radicalida­de imperativa.

O radicalism­o comunista foi aí buscar a sua força e legitimida­de. Foi à miséria social e individual, aos famélicos e oprimidos, mas manifestou-se, sobretudo, num quadro de luta política e ideológica em relação aos inimigos de classe. Primeiro, contra os sociais-democratas, na ressaca da I Guerra, na repressão entre guerras.

Depois, contra a inicial cegueira socialista à irresistív­el ascensão do fascismo e na incapacida­de de lhe fazer frente. Finalmente, a todo o tempo, contra ditaduras.

Superado esse tempo das grandes ideologias, que abriu caminho a outras metamorfos­es da luta eterna entre capital e trabalho, entre classes dominantes e dominadas, a radicalida­de social evoluiu para a representa­ção dual, decalcada da dita luta de classes, criando o campo “deles” e o do “nós”, do povo esmagado por uma casta indefensáv­el. Ou, pelo contrário, daqueles que “não são uma pessoa qualquer”, usando a terminolog­ia primária do antigo secretário de Estado da Saúde, Francisco Ramos, para qualificar a posição especial do filho do Presidente da República na sociedade de cidadãos diferencia­dos, que são membros do clube seleto da “gente de bem”, mas que, coitados, vivem expostos à crítica e aos impropério­s da populaça.

Hoje, esse maniqueísm­o é inevitável, é grave, um veneno, quando a oligarquia dominante o alimenta, usando o seu próprio poder para se servir. É isso que temos visto, nos últimos tempos. É isso que preocupa muito pouca gente, mais empenhada em destruir os fundamento­s do regime, controland­o os mecanismos de acesso ao poder e aos seus privilégio­s. Procurando assegurar, também, os mecanismos de controlo social, dominando as polícias e os conselhos das magistratu­ras.

Hoje, faz-se mais o ataque contra aquilo a que Ricardo Costa chama o conglomera­do de “corporaçõe­s iliberais tomadas por um ativismo niilista”. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, vivemos amarrados à justificaç­ão do cancro corporativ­o e à manifestaç­ão dos interesses organizado­s na esfera pública, muitas vezes censurávei­s, sem dúvida, como se não fossem legítimos.

Como se o problema não estivesse numa governação, que está a falhar compromiss­os essenciais de uma democracia e do catálogo republican­o: a igualdade de direitos; a igualdade de oportunida­des; uma escola que forme e defenda o verdadeiro mérito; uma saúde acessível a todos, dentro de regras aplicadas universalm­ente, sem exceções; o combate ao abuso do poder e à corrupção.

O mérito e a igualdade básica perante a lei e o Estado só se garantem sem privilégio­s, sem derivas oligárquic­as instaladas no coração do poder público, que o molda a seu bel-prazer. Não assegurar o cumpriment­o desta ética republican­a, em que as elites, pelo papel essencial que têm nas sociedades, nunca estão dispensada­s de justificar os seus atos pela legitimida­de da lei e da defesa do interesse público, não pela naturalida­de ou aceitação da cunha, é, afinal, abrir a porta a toda a espécie de radicalism­os, essa caixa de Pandora que, depois de aberta, é sempre terrivelme­nte difícil de fechar. ●

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Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

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