SÁBADO

à ASCENSÃO E A QUEDA DE JOSÉ NEVES E DA FARFETCH

O gigante que o pôs na lista dos mais ricos do País, com acesso a um exclusivo clube criado por Bill Gates, foi o mesmo que o fez cair do pedestal tecnológic­o e do da moda luxo. Os acionistas tudo perdem – para já, o empresário fica.

- Por Ana Taborda

No último mês, a agenda de José Neves esteve particular­mente atribulada. A partir do seu escritório de Nova Iorque, o empresário que em 2019 chegou à quarta posição dos mais ricos de Portugal, teve que gerir dezenas de reuniões. Além da Bolsa norte-americana, a quem foi preciso explicar porque é que no dia 29 de novembro a apresentaç­ão de resultados da Farfetch era cancelada a menos de 24 horas do evento (sem nova data ou justificaç­ão), houve encontros com vários fundos de investimen­to e empresas como a Amazon. Objetivo: conseguir 500 milhões de dólares até ao Natal e salvar a gigante do luxo da falência. Longe da moradia com jardim que tem na Foz, uma das zonas mais caras do Porto, o empresário fez o acordo possível: a falência imediata da Farfetch fica afastada com o empréstimo da sul-coreana Coupang, mas a empresa tal como a conhecemos será liquidada, os investidor­es e os trabalhado­res com ações perdem tudo (ver caixa) e toda a administra­ção, com exceção de José Neves, já se demitiu. “É a história de uma empresa que ficou sem dinheiro”, diz um especialis­ta sobre o primeiro unicórnio português, estatuto reservado a startups que valem mil milhões de dólares (ou mais). E como chegámos aqui?

A chegada a Wall Street

Para perceber melhor é preciso recuar a 21 de setembro de 2018, quando a bandeira nacional foi içada pela primeira vez numa das maiores bolsas do mundo e José Neves deu um beijo à mulher para celebrar. Porque se foi depois desse dia que a Farfetch encaixou mais de 800 milhões de euros e José Neves ascendeu a uma lista restrita de pessoas com uma fortuna superior a 1.000 milhões (foi o primeiro português convidado a aderir ao movimento filantrópi­co Giving Pledge, liderado por Bill Gates e Warren Buffett), também foi aí que a trajetória do gigante começou a inverter-se. “Durante uma década, ele foi um menino de ouro. A elite mundial adorou a Farfetch”, diz à SÁBADO uma fonte do mundo financeiro. E isso viu-se nas sucessiva rondas de investimen­to: entre 2010 e 2017, a empresa angariou 611 milhões de euros. “As empresas, quando são privadas, têm um suporte muito grande para crescer, apesar de muitas vezes estarem a perder dinheiro, mas quando entram em Bolsa são mais um. Os investidor­es querem saber quanto é que ganhou, quanto vai ganhar, e se não cumprirem as expectativ­as [o que aconteceu várias vezes] castigam. O escrutínio é muito maior”, acrescenta a mesma fonte, que explica não haver propriamen­te alternativ­a: ou a Farfetch entrava em Bolsa ou era vendida, porque os fundos de investimen­to têm de sair do capital em 10 anos. E José Neves, devia ter saído? “As empresas precisam de lideranças diferentes nos seus vários momentos. Fazer o percurso comple

COM A ENTRADA DA FARFETCH EM BOLSA, JOSÉ NEVES CHEGOU AO 4º LUGAR DOS MAIS RICOS – VALIA MIL MILHÕES

to não é para todos. Nem toda a gente é o Steve Jobs [fundador da Apple] e a dada altura também ele foi para a rua.”

Para José Neves, o princípio de tudo foi um computador ZX Spectrum que os pais lhe ofereceram aos 8 anos e que trazia apenas um manual de programaçã­o de 500 páginas. “Foi assim que me apaixonei por código”, disse à SÁBADO em 2014. A mesma razão que o levava a ir com a mãe à faculdade onde Maria Augusta Ferreira Neves dava aulas (de Matemática) para poder usar o centro de computação.

Aos 12 anos, fez um primeiro software, que automatiza­va desdobrame­ntos para Totoloto e Totobola. Um ano depois, voltou ao Porto, a cidade de onde a família tinha saído quando o pai foi promovido a diretor de marketing de uma farmacêuti­ca. “[Em Algés] Detestei a escola porque faziam pouco do meu sotaque, e pedi para ficar com os meus avós no Porto”, contou ao Expresso. Era com os avós que almoçava e jantava todos os dias, mas aos 13 anos já preferia dormir sozinho no apartament­o que os pais mantinham no Porto.

Quando à programaçã­o juntou-lhe um negócio de família – o avô materno teve uma fábrica de calçado em Felgueiras –, reuniu os dois ingredient­es que viriam a fazer a Farfetch: moda e tecnologia. O curso que escolheu, Economia, tinha o objetivo de a tornar possível: “quando lhe perguntei o porquê de ter escolhido este caminho e não o da engenharia, respondeu-me que já sabia que conseguia aprender programaçã­o sozinho, não precisava de ter aulas. Mas que também sabia que ‘não conseguia ler balanços e demonstraç­ão de resultados e entender contabilis­tas’”, escreveu Ana Pimentel no livro Unicórnios Portuguese­s – A História das startups de mil milhões de dólares.

Aos 19 anos, quando ainda estudava Economia mas já sabia ler balanços de resultados, montou a sua primeira empresa, a Utilitas, que se estreou com um software para clínicas dentárias. Ainda com a Utilitas (depois Grey Matter), começou a trabalhar para o setor do calçado e em 1995 passou do software ao design:

ANTES DE FUNDAR A FARFETCH, VENDEU SAPATOS A MARILYN MANSON E À GUERRA DAS ESTRELAS

desenhou a sua própria coleção de calçado num tempo em que as Spice Girls (futuras clientes, tal como Robbie Williams e Marilyn Manson) inspiravam plataforma­s altas e cores fluorescen­tes. Vendeu-a pela primeira vez numa feira em Itália e um ano mais tarde abriu a primeira loja da Swear em Covent Garden, um bairro vanguardis­ta de Londres, cidade que se habituara a visitar quando a mãe ali fez um doutoramen­to.

Vendas online, mas por email

Seria na Swear que um produtor da Guerra das Estrelas viria a comprar 150 sapatos para um dos episódios da trilogia. Em 1997, dois anos depois de a Amazon ser fundada, a Swear já vendia produtos online – mas sem que a City londrina, onde também a Farfetch tem sede, percebesse bem o que queriam fazer: “Fomos ao banco e olharam para nós como se fossemos alienígena­s”, contou à SÁBADO. Por isso, as vendas faziam-se de forma hoje impossível: os dados dos cartões de crédito chegavam à loja por email. Com o cresciment­o da empresa (no fim dos anos 90 havia 40 lojas Swear pelo mundo), o curso de Economia ia ficando por terminar. Nasciam, entretanto, outros negócios, como a Six London, em 2001, que ainda existe e tem licenças de marcas de sapatos como os da Lacoste.

Também faltava cada vez menos para a sua grande aventura, a Farfetch, lançada em 2008, duas semanas depois da falência do Lehman

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A 21 de setembro de 2018, a Farfetch estreou-se na Bolsa de Nova Iorque – superou a cotação de estreia da Amazon
▼ A 21 de setembro de 2018, a Farfetch estreou-se na Bolsa de Nova Iorque – superou a cotação de estreia da Amazon

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