SÁBADO

Ataque da rainha rebelde

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Joana não sente a quarta-feira, sobrepõe-se o Natal. Passa das seis e meia, a maioria das pessoas já deixou o emprego, faltam apenas dois dias para a véspera de Natal, depois de amanhã. Apesar de ter escurecido, e bem, as luzes ligadas em toda a parte, não é evidente se ainda se deve dizer boa tarde ou se já chegou a hora de dizer boa noite. É o fim do dia 22 de dezembro de 1993 e o início da rua do Carmo. Naquele ponto, àquela hora, vultos levam o ambiente natalício em sacos cheios de embrulhos. Um vendedor de castanhas revolve o assador, também esse é um aroma de Lisboa e de Natal. Joana aproxima-se da montra da sapataria Charles. Como se olhasse para os sapatos expostos, disfarçada de compradora de presentes, detém o olhar em mulheres com collants opacos a experiment­arem botas. O seu pensamento, no entanto, está longe dessa ginástica. Lembra-se da primeira vez que reparou em João, na faculdade. Gostou do convencime­nto com que desafiava qualquer um. Estava junto à máquina do café, entre as mesas dos jogadores de cartas. Diante de um tabuleiro de xadrez com as casas gastas, os contornos dos quadrados esbatidos, o rei branco com a cruz partida, todas as peças gastas, algumas mordidas, um dos bispos pretos desapareci­do, substituíd­o pela tampa de uma caneta Bic, João desafiava adversário­s. Caloiros de Geografia e de Sociologia sentavam-se diante dele e, um a um, em poucos lances, eram batidos sem apelo, xeque-mate. Joana achou piada a tanta bazófia. Na primeira vez que riu, ele reparou nela.

Agora faltam dois dias para a véspera de Natal, e continua a subida, avança entre pessoas paradas no meio da rua do Carmo ou a descerem-na, errantes, Joana contorna-as da mesma maneira que João se desviava de carros no ecrã do salão de jogos, sentado na máquina, sempre gabarolas, a gastar um bolso cheio de moedas de cinco escudos. Nesses dias, Joana sorria em silêncio, era a namorada orgulhosa. Agora, avança com animosidad­e, irritada consigo própria. Ao passar pelas obras, culpa João pela lama, pela demora da construção civil, pela burocracia. O Chiado ardeu há cinco anos, porque demoram tanto estas obras? Joana aperta os lábios. A culpa é de João, a culpa de tudo é de João, culpado até do frio que começa a entrar-lhe pelas pernas das calças, até daquelas obras intermináv­eis, culpado de todos os males do mundo.

A mulher estende-lhe o isqueiro e faz-lhe uma pergunta: não queres que te empreste o pulmão?

Joana aproxima-se de uma mulher que está a acender um cigarro, com o maço na mão, SG Gigante, e pede-lhe um. Não pode dizer que não, tem o maço cheio. Joana pede lume também. Contrariad­a, a mulher estende-lhe o isqueiro aceso e faz-lhe uma pergunta que traz pensada: não queres que te empreste também o pulmão? Joana aponta-lhe um olhar afiado e afasta-se sem agradecer. Entre dentes, deseja-lhe o pior: velha ordinária. Terá pelo menos uns 40 anos, de certeza. Na montra da livraria Sá da Costa, estão livros que Joana imagina por instantes. Inspira fumo como se estivesse a encher-se e, logo a seguir, sopra um jato longo, reto, quase intermináv­el. Passa pela Benard e pela Brasileira onde, por detrás do balcão, empregados fardados batem com o manípulo da máquina de café, libertando-se de borras e arrelias. Com um braço pousado sobre o corrimão de pedra das escadinhas da igreja do Loreto, Joana repara na forma como as luzes dos carros explodem vermelho e branco no alcatrão húmido, assiste à passagem de um elétrico iluminado, a campainha a dar sinal desse caminho certo pelos carris. Até sentir a ponta dos dedos a aquecer na brasa, dá as últimas baforadas no cigarro. Não sabe porque se sente cansada. A culpa é do João, acredita.

Vinda de trás, por cima do ombro, há uma voz que se aproxima do seu ouvido e que lhe sussurra obscenidad­es. Joana sente esse hálito molhado, a batida de cada sílaba na orelha, e, sem se virar, lança-se a subir a rua da Misericórd­ia. Muito aos poucos, a repugnânci­a e o ritmo do coração abrandam. Joana quer esquecer essa violência e lembra-se de João, há uma ternura súbita nessa memória. Lembra-se da fragilidad­e do seu rosto, no fim das bebedeiras, indisposto, depois de vomitar, quando já não conseguia vomitar mais, pálido, a precisar de ajuda, náufrago, ela a conseguir distinguir o rosto de menino no rosto de um marmanjo de 22 anos, a parecer-lhe então que esse era o João verdadeiro. Mas, logo a seguir, rodeando figuras do presépio, lisboetas que talvez sigam uma estrela, depois de passar o teatro da Trindade, de espreitar para o interior de alfarrabis­tas, homens de óculos entre prateleira­s de livros do chão ao teto, Joana lembra-se melhor de João, essas bebedeiras insuportáv­eis, a pedir-lhe para não beber mais, e ele a ignorá-la, irritantem­ente, como se aquelas súplicas do coração não tivessem qualquer valor, como se ela não tivesse qualquer valor, João a desvaloriz­á-la com as suas gargalhada­s artificiai­s, a rir-se de piada nenhuma.

Não, basta de João. Aquele namoro não tem futuro. Quase seis meses desperdiça­dos. Em Queluz, antes de sair de casa, antes de apanhar o comboio, Joana passou alguns minutos a decidir se devia ir. Teve vontade de ligar para a casa da senhora que alugava um quarto ao João, a Dona Lucinda gostava tanto dela. Repetia que, se tivesse tido filhos, e se eles tivessem tido uma filha, Joana podia ser sua neta. Talvez por isso, a Dona Lucinda batia devagar com a dobra dos dedos na porta do quarto da Praça do Chile, na sua própria casa, não queria incomodar João e Joana. Estavam a estudar, diziam. Teve vontade de ligar e deixar recado, daria uma desculpa qualquer, que tinha de estudar, que estava com febre, que a mãe lhe tinha pedido para tomar conta do irmão pequeno. A Dona Lucinda aceitaria qualquer uma dessas desculpas, encontrar-lhe-ia lógica, talvez até a anotasse no bloco que tem ao lado do te

lefone, para não se esquecer. Mais tarde, quando João chegasse e recebesse essa justificaç­ão, saberia imediatame­nte que era uma desculpa, que Joana tinha faltado por vontade e decisão. Esse seria um pré-aviso. Mas não, Joana quer resolver o assunto quanto antes. Fez 20 anos em outubro, está no segundo ano de Português/Francês, sem cadeiras em atraso, já não tem paciência para intrigas de escola secundária. Passa ao lado da estátua do cauteleiro, passa a poucos metros da porta aberta da igreja da Misericórd­ia e, quando a rua se estreita, entre altas paredes, avança pelo passeio ínfimo, as pessoas encolhidas, e atravessa a rua, aproveitan­do os solavancos que os carros dão no terreno acidentado, mal calcetado, nos carris do elétrico. À porta do café Estádio, ainda cá fora, a cidade, mas perante a luz e o ruído que chega do seu interior, pequeno mundo, Joana enche o peito de ar e carburação de motores. Dá um passo.

Paula levanta um braço instantâne­o, acena. Esbatidos pelo fumo, névoa que espeta alfinetes finos nos olhos, Joana distingue a mesa onde estão Paula, Paulo e João. Ao aproximar-se, atravessan­do a espessura do ar e do ruído, há muito mais entusiasmo nos rostos do casal de namorados do que nos olhos entreabert­os de João. Dão um beijo nos lábios, seria estranho se não se cumpriment­assem. Joana sente o sabor a Macieira, o copo está vazio à frente de João, o melaço a escorrer pelas paredes de vidro, o risquinho azul. Paula e Paulo, no entanto, de mãos dadas, sorriem-lhe, alegram-se com a sua chegada. Paulo levanta-se de repente, vai buscar uma cadeira a outra mesa e oferece-lha. Era isto que Joana gostava que João tivesse feito, mas ele só quer retomar a conversa, terminar uma frase que tinha iniciado antes da sua chegada. Tem uma teoria que não pode esperar acerca da defesa siciliana, acerca de uma variação sobre a defesa siciliana. Paulo ouve, já sabe o que o amigo tem para dizer e, depois, com pausas paternalis­tas, explica-lhe que, nesse caso, já não se pode considerar que ainda seja uma defesa siciliana, será outra abertura qualquer, vislumbra-lhe poucas possibilid­ades de sucesso. Com a voz arrastada, as palavras mal esculpidas, João exalta-se, como seria de esperar. Joana e Paula deixam de ouvir, como costuma acontecer durante estas conversas aborrecida­s de xadrez. Os rapazes, no entanto, nunca se cansam. Xadrez e política são temas infinitos. No xadrez, há concórdia, complement­am-se até quando discordam. Na política, há confronto, antagoniza­m-se até quando estão de acordo.

Num volume mais baixo do que o dos rapazes, Paula começa a contar alguma notícia da faculdade. Joana não tem qualquer interesse e deixa que esse fio se dilua na algazarra que enche o café. Presta atenção a detalhes que, parece-lhe, estão abandonado­s naquele momento, tão vivos e, no entanto, mais ninguém repara neles: o fundo dos copos a baterem no tampo das mesas, cerveja, cerveja, as beatas a serem esmagadas nos cinzeiros cheios, as bifanas tortas a voarem até às mesas, os empregados desagradad­os com o mês de dezembro e com a vida, as luzes brancas a darem demasiada crueza aos traços de tanta gente feia, as cascas de amendoim a es

talarem debaixo das solas dos sapatos, alguém a rir-se demasiado alto, pelo nariz, é João que ri assim. Paula espera uma reação a qualquer coisa que disse, Joana reage de acordo com a expectativ­a que imagina. João levanta o copo vazio no ar, pede outra Macieira. Esse grito é natural, não é ele o único que grita no café. A televisão não entra nessa disputa. Indiferent­e, verte música de anúncios, locutoras articulada­s a darem conta dos programas para o resto do serão, telejornal, boletim meteorológ­ico, telenovela, etc. Joana identifica a sua oportunida­de.

Na televisão, com cores que fogem dos contornos, Cavaco Silva e Felipe González apertam a mão diante de um avião, na chegada a Palma de Maiorca. Joana interrompe uma frase de Paulo sobre um movimento no xadrez, uma enumeração de letras e números, e chama a atenção para o ecrã. Passam dois segundos e João faz um comentário que não agrada a Paulo. E começam a discussão. Os nomes de Cavaco Silva e Felipe González enredam-se nesse debate que rapidament­e sobe de tom. A partir de certa altura, parece que os próprios primeiros-ministros se travaram de razões, como se deixassem de preocupar-se com fatos, gravatas e penteados. Paula tenta conter João e Paulo, mas ninguém a ouve. Joana assiste com gosto e, no momento em que os rapazes começam a abrandar, prontos a assumirem um compromiss­o naquela cimeira bilateral do Bairro Alto, Joana traz o assunto das eleições autárquica­s, Jorge Sampaio reeleito para a câmara de Lisboa. Foi o suficiente.

Um quarto de hora mais tarde, sem que ninguém esteja à espera, João empurra Paulo e, por acidente, derruba os copos da mesa. O café cala-se de repente. Só a televisão continua a lançar som sobre o fumo suspenso. Durante este instante, imediatame­nte antes da intervençã­o dos empregados maldispost­os, desdentado­s, Joana pensa que já está, pode acabar o namoro, basta de João e, sorrindo, lembra-se das vezes em que ouviu João falar do ataque Danvers, também conhecido como “ataque da rainha rebelde”. ●

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