SÁBADO

AS CHAMADAS DISPENSÁVE­IS

- ÂNGELA MARQUES

O “deio receber áudios”, conclamou ele, enquanto cortava mais uma lasca de queijo de cabra com uma cara de desagrado que tanto podia apontar ao queijo (que não era o seu preferido) quanto aos áudios (que aparenteme­nte abominava). Eu não o conhecia da véspera, pelo que nada no tom agastado dele me chocava. Ninguém à mesa, aliás, o estranhava: o apelido dele era inflamado. Assim, como bonsons ami-amigos, íamos ajudá-lo a fermentar o ódio com gotinhasas de vinagre de raiva.

Naquele prós e contras,ras, só víamos contras. Se os áudios fossem de trabalho, configurao­n figuravam, automatica­mente, te, uma falta de respeito, apenasnas superada pelo telefonema iniciado com a frase “ia mandar mensagem mas ligar é mais fácil”. Quando, questionáv­amo-nos, é que as mensagens tinham caído em desuso? Quando é que a ideia de uma frase cravada num envelope que aparecia num canto do ecrã sem urgência, sinalizand­o apenas que alguém teria algo para dizer, tinha deixado de nos parecer sedutora?

Às tantas, naquela febre de chegarmos a algum lado, a frase batida “depois de mim virá quem bom de mim fará” aplicava-se como a estrela no topo do pinheiro àquela conversa. “Se é para me aborrecere­m, liguem-me”, dizia ele, para ser imediatame­nte desmentido por outra amiga, que o recordaria de uma ligação recente. Durantete a chamada o meu amigo ti

“SE É PARA ME ABORRECERE­M, LIGUEM-ME”, DIZIA ELE, PARA SER IMEDIATAME­NTE DESMENTIDO POR UMA MEMÓRIA

nha sido visto a fazer piscinas até, finalmente, encaminhar-se para a varanda, de onde só sairia findo o telefonema.

Imagine, prezado leitor, a seriedade de uma COP28 misturada com a sobriedade de uma reunião dos G11 coroada pela gravidade de uma cimeira dos BRICS. Assim estávamos nós, mas com vinho. As teorias eram explanadas com sucesso: ninguém percebia as suas consequênc­ias mas toda a gente retirava prazer da edificação dos argumentos.

Estaríamos há 20 minutos a discutir a forma menos lesiva de estabelece­r contacto entre humanos quando uma das minhas amigas deslindou tudo. A razão pela qual tanta gente faz quilómetro­s nos corredores das empresaemp­resas, ou círculos nas salas de esperesper­a, ou até procura uma varanda para manter conversas ao telefotele­fone é só uma: quando não se cconsegue fugir da conversa,versa, fofoge-se de onde se está. Acaraé de pânico?Édesab ermos mos que tudo se teria resolvido com umuma mensagem. ●

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