JÁ DEVÍAMOS TER VENCIDO OPRECONCEITO
Na estreia no romance, Beatrice Salvioni retrata uma Itália em mudança através do olhar de duas adolescentes que estão a encontrar a sua voz, uma voz que o fascismo de Mussolini não quer ouvir.
ENTREVISTA BEATRICE SALVIONI
Duas amigas adolescentes, Itália durante o período fascista e um sentimento constante de resistência. O modelo, assim apresentado, de Malnascida, romance de estreia de Beatrice Salvioni (n. 1995) parece devedor às histórias de Elena Ferrante. Conforme se avança nas páginas e se interioriza este universo de duas raparigas distintas, uma tímida (Francesca) que se faz amiga de outra que é vista como uma bruxa por toda a comunidade (Madalena, a Malnascida), absorve-se uma escrita preocupada com o presente, e em consequência com o futuro, e a resistência a mudanças estruturais ao modo de viver. A pergunta está lá quase sempre, depois destas experiências, destes anos todos, porque é que a sociedade ocidental ainda é patriarcal, machista, racista e tão apavorada com a mudança? Falámos com a autora há semanas, em Lisboa.
É natural de Monza e a história de Malnascida ocorre lá. Porquê?
Grande parte da minha vida foi em Monza, especialmente a infância. As coisas que a Francesca faz, como descer as colinas com a bicicleta, da forma mais rápida possível, para vencer os seus medos, eu também fiz.
E não contava à sua mãe?
Não, claro [risos]. Mas o percurso que ela [protagonista] faz é o mesmo que o meu. Tenho bem presente o que é ser criança naquele sítio, mas há outra razão: queria que a história se passasse numa cidade pequena, onde toda a gente se conhece e quando há um rumor, toda a gente sabe. Queria aprofundar a relação entre duas adolescentes, uma tímida e outra que diz a toda a gente que não tem medo. Queria explorar a importância da voz, o que é preciso fazer para a tua voz ser ouvida. E sou um bocado sádica com as personagens, pensei qual seria o período mais difícil para isso acontecer.
Durante os anos de fascismo em Itália.
Por causa do machismo, racismo, a sociedade patriarcal, tudo no seu expoente máximo, era impossível elas serem ouvidas. Para mim também era melhor olhar para o passado, dar aquele passo para trás e pensar porque é que algumas coisas ainda existem da mesma forma.
Ao ler o livro tive essa sensação: estamos a voltar a este sítio. A voz delas é para ser ouvida no presente?
A luta delas é também a tua. As pessoas e as comunidades oprimidas têm necessidade de ser ouvidas e creio que está a tornar-se mais difícil. É enfurecedor. E é um paradoxo, nos dias de hoje já devíamos ter vencido o preconceito, a sociedade patriarcal, a tradição opressiva. Mas não, parece que é algo circular e que está a voltar, a ficar maior e mais assustador. Há uma ansiedade à minha volta, a sensação de que as coisas se estão a tornar piores.
A Malnascida comporta-se como um homem para ser melhor do que eles?
Não pensei nela como se estivesse a agir como um homem, mas como uma criatura diferente. Cresceu, desde criança, com esta ideia de que era uma bruxa, acarinhada pelo diabo. Era o que as pessoas lhe diziam. Convenceu-se disso. Se me dizes que sou assim, vou mostrar-te que sou assim: é um misto de poder e mecanismo de enfrentamento.
A história acontece num período de mudança. Acha que atravessamos um momento semelhante?
Penso que quando uma história te encontra, tens de a escrever dessa forma. Não é para forçar uma mensagem, caso contrário deixa de ser uma história.
“Eu antes não tinha medo do futuro, agora tenho.” Tem medo do futuro?
Sim, sinto o mesmo. Quando era mais nova, era como se “eles” – “eles” no geral, o mundo – tivessem a promessa de que estava tudo disponível. Podias ter tudo, só tinhas de acreditar. Agora essa promessa está quebrada, não significa nada, é pó. Não consigo acreditar no futuro como acreditava até há poucos anos. É algo triste.
E parece que não há escapatória. Havia uma ideia de futuro, associada ao trabalho, ao lazer, à vida, que não se cumpriu.
É mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo.
Essa famosa frase do Mark Fisher.
Ninguém se preocupa em mudar. As pessoas que têm a real possibilidade de mudar, não querem saber. Como não ganham nada com isso, não querem saber. É enfurecedor. ●
Queria aprofundar uma relação entre duas adolescentes, uma tímida e outra que diz a toda a gente que não tem medo. O que é preciso fazer para a tua voz ser ouvida?