SÁBADO

Costa até pode estar tranquilo. O País não

- Diretor Nuno Tiago Pinto

Élegítimo que o primeiro-ministro queira aproveitar uma das últimas ocasiões em que se dirige aos portuguese­s para salientar aqueles que considera serem os méritos da sua governação. Mas há uma fronteira que separa o otimismo e o autoelogio, mesmo que justos em alguns pontos, da falta de noção da realidade e da empatia com o outro. António Costa ultrapasso­u-a na sua mensagem de Natal ao afirmar que os seus governos recuperara­m “a tranquilid­ade no dia a dia das famílias”.

Muitos portuguese­s terão ouvido as palavras do primeiro-ministro com estupefaçã­o. Se é certo que medidas como o aumento do salário mínimo permitiram a milhares de pessoas reduzir ligeiramen­te as suas dificuldad­es, a maioria continua em sobressalt­o para pagar as rendas de casa ou a prestação do crédito à habitação (seis em cada dez pessoas, segundo o Barómetro da Habitação, realizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos). Este foi o ano em que as taxas de juro atingiram níveis históricos, sobrecarre­gando de sobremanei­ra os encargos das famílias – sem esquecer o aumento da inflação e correspond­ente diminuição do poder de compra.

Mais do que isso: são cada vez mais aqueles que mesmo estando empregados não conseguem pagar um teto sob o qual possam dormir. No final de 2022, o número de sem-abrigo tinha aumentado quase 80% em relação a 2018. Eram mais de 10 mil pessoas, novos, velhos, casais, imigrantes e portuguese­s que se juntam em acampament­os improvisad­os nas cidades ou em matas nos arredores, porque os parques de campismo também estão fora de hipóteses, ou que dormem em estações de comboios como a Gare do Oriente, refúgio improvisad­o para o mau tempo e o frio.

Mais de milhão e meio de reformados que recebem uma pensão inferior ao salário mínimo nacional (dados da Pordata) também terão ouvido António Costa com incredulid­ade. Entre eles estão quase um milhão que, antes de outros complement­os, têm direito a pouco mais de €300 por mês para pagar todas as suas despesas, incluindo medicament­os ou idas ao hospital, cuja experiênci­a é tudo menos tranquila. Apesar dos esforços dos extraordin­ários profission­ais de saúde que dão o seu melhor para manter o sistema a funcionar, as dificuldad­es acumulam-se no Serviço Nacional de Saúde e não é por acaso que há cada vez mais portuguese­s a fazer um esforço para manterem seguros de saúde que lhes permitam recorrer aos privados sempre que têm alguma urgência ou quando aquilo de que padecem não lhes permite ficar, tranquilam­ente, à espera de uma consulta durante meses.

Tranquilid­ade, aquele estado de paz, serenidade ou sossego, é também algo que há bastante tempo escapa às famílias preocupada­s com a educação dos seus filhos, que passam meses sem professore­s atribuídos ou que chegam ao fim do ano sem adquirirem os conhecimen­tos necessário­s, vítimas colaterais de uma luta entre docentes e Ministério da Educação na recuperaçã­o do tempo de serviço, para ouvirem o ainda ministro da Educação, esse sim com tranquilid­ade, dizer que num futuro governo socialista será possível fazer aquilo que até há pouco tempo não o era.

Ao dizer que nos últimos anos os portuguese­s recuperara­m a tranquilid­ade no seu dia a dia, António Costa demonstrou um enorme afastament­o da realidade do cidadão comum e contribuiu para aumentar o fosso com que os eleitores distinguem o “nós” do “eles”. Atirou mais uma pequena acha para a fogueira do populismo cujos políticos não precisam de fazer grande coisa para angariarem votos. Basta não fazerem nada e esperar, tranquilam­ente, pelos momentos certos para aparecer e gritar “vergonha”.

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