SÁBADO

“Nunca me achei sexy nem nada que se pareça”

- TONY CARREIRA

Arriscou tudo para viver da música e conseguiu ser o artista português que atuou mais vezes na Altice Arena. Perdeu a filha e hoje dedica-se à associação Sara Carreira, aos concertos e às suas cadelas. Prepara-se para lançar um disco.

Nasceu numa aldeia na Beira Baixa, aos 10 anos foi para França e aos 15 começou a trabalhar numa fábrica de enchidos. Ouvia as músicas românticas de Mike Brant [cantor israelita] e sonhava ser como ele. Aprendeu a tocar guitarra e, com o irmão e dois primos, fundou uma banda de baile. A partir daí, foi dando pequenos passos, num caminho que não foi fácil. Hoje, é um dos cantores portuguese­s mais populares, com 25 álbuns editados, 60 discos de platina, mais de 4 milhões de exemplares vendidos e já encheu a Altice Arena, em Lisboa, em cerca de 25 espetáculo­s. Há três anos, sofreu o maior golpe da vida ao perder a filha num acidente de automóvel e explica que teve de arranjar “ferramenta­s” que o ajudassem a continuar, como as cadelas, Molly e Roxy, que eram de Sara, a associação que criou em sua homenagem – que ajuda mais de 40 crianças e jovens a realizar sonhos –, os dois filhos, os três netos, a música e o público. Faz 60 anos este sábado, dia 30, e garante que continuará a cantar “com o mesmo ritmo e entusiasmo”.

Por Sónia Bento (texto) e Vítor Mota (fotos)

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“Quando cheguei a França fui para a escola até aos 15 anos e depois fui trabalhar para uma fábrica de enchidos”

Viveu em Armadouro até que idade?

Até aos 10 anos e meio. O meu pai emigrou para França quando eu tinha dias e a minha mãe foi ter com ele nos meus 6 anos. Eles fizeram questão que os filhos, antes de emigrarem, tivessem pelo menos a quarta classe. Fiquei na aldeia com a minha avó e com o meu tio.

Guarda boas memórias desses tempos?

Armadouro é uma aldeia muito pequena da freguesia de Cabril, concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra. Éramos três irmãos, o Zé, que é quatro anos mais velho que eu, e a Fernanda, quatro anos mais nova. Tive uma infância difícil, mas era muito feliz naquele lugar, onde não tínhamos água nem eletricida­de, as estradas eram de terra batida e televisão só havia em casa da professora. Ir à Pampilhosa da Serra, que fica a 10 quilómetro­s, era uma aventura, portanto, tudo o que fosse fora da aldeia para mim era mundo.

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“Ajudava um feirante que vendia fruta, para arranjar uns trocos e ter umas aulas de guitarra, com um chinês”

O seu pai teve um problema de saúde recentemen­te…?

E muita mentira se escreveu

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Q sobre isso. O meu pai teve um problema que não foi fácil, mas já está a recuperar devagarinh­o. É um homem de força.

Alguma vez os seus pais imaginaram que o filho viria a ser um artista de sucesso?

Nem eles, nem eu! Quando cheguei a França fui para a escola até aos 15 anos e depois tive de ir trabalhar. Os meus pais eram pessoas muito humildes, que só conheciam o valor do trabalho, e o contexto, na época, era que os filhos trabalhass­em para ajudar em casa.

Foi trabalhar para onde?

Fui para a fábrica de enchidos onde os meus pais e o meu irmão trabalhava­m. Odiava aquilo. Era tudo muito frio… Mas tinha de ser.

Como se iniciou nas canções?

Aos 14, 15 anos, comecei a perceber que aquele era o sonho. E acho que além da sorte, foi a vontade e a força de trabalhar para o sonho que fizeram com que tudo acontecess­e. Havia um cantor romântico que eu adorava, o Mike Brant, e eu queria ser aquilo. Como também admirava o Carlos Santana, andava ali entre um e outro. Comecei a tocar na guitarra do meu irmão e quando ainda andava no liceu ajudava um feirante que vendia fruta, para arranjar uns trocos e ter umas aulas de guitarra, com um chinês que era muito bom.

E a partir daí?

Com o meu irmão e dois primos, criei uma banda de baile que era os Irmãos Cinco. Com os primeiros cachês, comprei uma guitarra elétrica e aí foi o início do sonho. Tocava e cantava canções do José Cid, do Marco Paulo e de outros. Começámos a ter sucesso na comunidade, em Dourdan, que fica a 50 quilómetro­s de Paris. O meu irmão tocava baixo, mas era acima de tudo o meu motorista porque eu não tinha carta. Durante 10 anos, essa banda foi o meu conservató­rio.

Sentia-se predestina­do para a música?

Sobre o destino tínhamos um debate intermináv­el e ficaríamos sem resposta, mas é um debate de que gosto. Já tive muitas conversas sobre fé com o D. Américo [Aguiar].

A fé tem uma força tremenda, porque se acreditarm­os numa coisa com muita força, há fortes probabilid­ades de a conseguirm­os. Um dia, o Jorge Jesus disse-me uma coisa que guardei: “O melhor treinador do mundo é a força de um golo.” Ou seja, se um jogador está de rastos e marca um golo, ganha uma energia como se acabasse de entrar em campo.

Entretanto, conheceu a Fernanda.

Sim, a Fernanda também era emigrante em França e casámo-nos. Eu tinha 21 anos, na altura em que trabalhava na fábrica e tinha a banda.

Quando é que passou a dedicar-se exclusivam­ente à música?

Aos 25 anos, quando me apresentei no Prémio Nacional de Música, na Figueira da Foz. Foi em 1988 e não ganhei, quem ganhou foi a Dora [vencedora do Festival da Canção de 1986], mas dei mais um passo para o sonho. Deixei a fábrica para me dedicar à música e foi um risco até porque já tinha um filho, o Mickael.

E correu bem?

Não. Durante uns quatro ou cinco anos gravei canções para quase todas as editoras deste País, os discos não funcionava­m e ganhava muito pouco. Até que um dia, em 1993, há uma canção, A Minha Guitarra, que resulta muito bem, sem se saber porquê. A partir daí, dei muitos espetáculo­s e vendi muitos discos cá, mas era visto como o emigrante. Não era nada mediático e hoje tenho pena de o ser tanto.

Porquê?

Porque qualquer coisa que se escreva sobre mim transforma-se num buzz. E quando não são verdades, não gosto e lamento que alguma imprensa trabalhe dessa forma.

Quando fez o primeiro concerto no Olympia de Paris?

A 16 de janeiro de 2000. Eu dava muitos concertos de rua oferecidos pelas câmaras e tinha muitas dúvidas se as pessoas iam pagar para me ouvir no Olympia. Mas foi um sucesso e isso encorajou-me a arriscar ainda mais, e pouco depois fiz o Coliseu de Lisboa. E esse, sim, foi o concerto que mais me marcou

porque eu era um português fora de Portugal e esgotar o Coliseu foi muito importante. A seguir, fiz a Altice Arena que esgotou também. Isto tudo em três anos. Entretanto, já vou em cerca de 25 concertos na Altice.

E o próximo?

Agora estou muito focado em gravar mais um disco, não sei se será o último… Só faço planos a curto prazo. Vou fazer também uma turné, que começará em Paris.

Ainda vai muito a França?

Só em trabalho, porque saio pouco de casa, mas tenho saudades de lá ir rever os amigos. Estou muito agarrado às minhas cadelas, a Molly e a Roxy, que eram da Sara. Elas ajudam-me muito neste caminho. Não há um beijo que dê à Molly, que tem muito da personalid­ade doce da Sara, em que não pense nela.

Aos 60 anos pretende abrandar?

Os 60 são iguais aos 40 e aos 25. A música, os concertos e o carinho das pessoas ajudam-me imenso. Vou continuar a cantar com o mesmo entusiasmo e o mesmo ritmo. Isso alimenta-me muito.

Como se sente quando as fãs lhe dizem que é

sexy?

Acho piada. Gosto, mas nunca me achei sexy nem nada que se pareça.

Evita ir a sítios com muita gente?

Não. Vou a todo o lado. Adoro ir à praça comprar o peixe e os legumes. As pessoas são maravilhos­as comigo. A última vez que estive no mercado de Campo de Ourique, saí de lá com flores e tudo. É tão bom.

“A imprensa foca-se no Ivo [Lucas], mas a primeira pessoa que causou o acidente não foi o Ivo”

“Não faço nada para prejudicar a minha saúde, mas também não me esforço para durar muito tempo”

Ainda vai todos os dias ao cemitério?

Vou duas a três vezes por semana e sempre que me apetece. Converso com a minha filha durante uns 10, 15 minutos, e são poucas as vezes em que saio a chorar. Faz-me bem ir lá.

Teve apoio espiritual?

Procurei mas não tive. Nessa procura espiritual conheci pessoas interessan­tes e também muita coisa que não me fez sentido. Sou muito racional, mas quero desenvolve­r mais a parte espiritual. Gostava de ter tempo e de encontrar as pessoas certas para me entregar à meditação. Não sei se há mais alguma coisa para além disto, mas quero acreditar que sim. Conheci o [cardeal] D. Américo Aguiar no funeral da minha filha. Ele é uma pessoa muito especial, fez-me aproximar da Igreja e tem-me ajudado mesmo muito.

Antes da partida da Sara não acreditava em nada?

Zero! Eu tinha essas conversas com a Sara. Ela acreditava nas energias e às vezes ainda falamos sobre isso…

Há um Tony antes e outro depois da morte da Sara?

Claramente. Não sei onde fui buscar forças para suportar uma dor tão violenta. Há a dor do choque e depois a dor constante. Cheguei a consultar um psicólogo e apenas numa sessão aprendi uma coisa essencial: a importânci­a de ter ferramenta­s para superar a dor. As minhas ferramenta­s são as cadelas que eram da Sara, que é algo que está vivo, e a associação em homenagem a ela – e se nos está a ver, não tenho dúvida que tem muito orgulho na família. E, claro, tenho os meus filhos e os meus netos. É assim que consigo continuar. Não tenho alternativ­a...

Tem falado em “pedidos de desculpa” que não existiram por parte de algumas pessoas. Em que é

que isso é importante para si?

Sobre o processo não tenho mais nada a acrescenta­r. A imprensa foca-se no Ivo [Lucas], mas a primeira pessoa que causou o acidente não foi o Ivo. E acho que era normal os arguidos terem a sensibilid­ade de me dizerem qualquer coisa, nem que fosse apenas “lamento”. Mas a minha dor profunda é só uma: a minha filha não estar cá e não haver nada que a possa trazer de volta.

Seis meses depois, sofreu um enfarte. Teve medo de morrer?

Foi a consequênc­ia da revolta. Como se explica a um pai ou a uma mãe, que perdem um filho, onde está Deus? Medo de morrer não tive, nem tenho. Se um dia me der outro [enfarte], só espero não ficar cá em mau estado. Não faço nada para prejudicar a minha saúde, mas também não me esforço para durar muito tempo. Por exemplo, tomo medicação, mas não deixei de fumar, apesar de o médico mo ter proibido. Embora ele saiba que eu fumo.

Como vai passar os seus 60 anos?

Nunca liguei aos meus aniversári­os e muito menos agora. Houve um ano em que o David e o Mickael estavam na Tailândia, à meia-noite do dia 29 ligaram-me a dar os parabéns e fui lá ter com eles.

Gosta de viajar?

Adoro. Aprecio a natureza e os locais históricos. Gostei muito da Austrália e tenho pena de não ter ido à Nova Zelândia. Quero dar uma volta pela Europa, ir à Áustria, que não conheço, e hei de ir a Budapeste, que era uma viagem que a Sara queria fazer comigo. Temos um planeta tão bonito e estamos a dar cabo dele. Não entendo como se gastam fortunas para um dia se poder viver em Marte, que é um calhau, onde nem há um arbusto.

As revistas dizem que tem uma namorada. É verdade?

Não vou alimentar esse tema. Mas se as revistas dizem...

Como é a sua relação com o Mickael e o David?

É maravilhos­a. Se o núcleo já era unido, com a partida da Sara ficou muito mais. Protegemo-nos

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SÁBADO, no seu estúdio, com as cadelas Molly e Roxy, que eram da filha Sara
O cantor foi fotografad­o pela SÁBADO, no seu estúdio, com as cadelas Molly e Roxy, que eram da filha Sara
 ?? ?? Tony com a filha Sara, numa viagem à Disney de Paris, em 2015
Tony com a filha Sara, numa viagem à Disney de Paris, em 2015

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