“Nunca me achei sexy nem nada que se pareça”
Arriscou tudo para viver da música e conseguiu ser o artista português que atuou mais vezes na Altice Arena. Perdeu a filha e hoje dedica-se à associação Sara Carreira, aos concertos e às suas cadelas. Prepara-se para lançar um disco.
Nasceu numa aldeia na Beira Baixa, aos 10 anos foi para França e aos 15 começou a trabalhar numa fábrica de enchidos. Ouvia as músicas românticas de Mike Brant [cantor israelita] e sonhava ser como ele. Aprendeu a tocar guitarra e, com o irmão e dois primos, fundou uma banda de baile. A partir daí, foi dando pequenos passos, num caminho que não foi fácil. Hoje, é um dos cantores portugueses mais populares, com 25 álbuns editados, 60 discos de platina, mais de 4 milhões de exemplares vendidos e já encheu a Altice Arena, em Lisboa, em cerca de 25 espetáculos. Há três anos, sofreu o maior golpe da vida ao perder a filha num acidente de automóvel e explica que teve de arranjar “ferramentas” que o ajudassem a continuar, como as cadelas, Molly e Roxy, que eram de Sara, a associação que criou em sua homenagem – que ajuda mais de 40 crianças e jovens a realizar sonhos –, os dois filhos, os três netos, a música e o público. Faz 60 anos este sábado, dia 30, e garante que continuará a cantar “com o mesmo ritmo e entusiasmo”.
Por Sónia Bento (texto) e Vítor Mota (fotos)
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“Quando cheguei a França fui para a escola até aos 15 anos e depois fui trabalhar para uma fábrica de enchidos”
Viveu em Armadouro até que idade?
Até aos 10 anos e meio. O meu pai emigrou para França quando eu tinha dias e a minha mãe foi ter com ele nos meus 6 anos. Eles fizeram questão que os filhos, antes de emigrarem, tivessem pelo menos a quarta classe. Fiquei na aldeia com a minha avó e com o meu tio.
Guarda boas memórias desses tempos?
Armadouro é uma aldeia muito pequena da freguesia de Cabril, concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra. Éramos três irmãos, o Zé, que é quatro anos mais velho que eu, e a Fernanda, quatro anos mais nova. Tive uma infância difícil, mas era muito feliz naquele lugar, onde não tínhamos água nem eletricidade, as estradas eram de terra batida e televisão só havia em casa da professora. Ir à Pampilhosa da Serra, que fica a 10 quilómetros, era uma aventura, portanto, tudo o que fosse fora da aldeia para mim era mundo.
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“Ajudava um feirante que vendia fruta, para arranjar uns trocos e ter umas aulas de guitarra, com um chinês”
O seu pai teve um problema de saúde recentemente…?
E muita mentira se escreveu
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Q sobre isso. O meu pai teve um problema que não foi fácil, mas já está a recuperar devagarinho. É um homem de força.
Alguma vez os seus pais imaginaram que o filho viria a ser um artista de sucesso?
Nem eles, nem eu! Quando cheguei a França fui para a escola até aos 15 anos e depois tive de ir trabalhar. Os meus pais eram pessoas muito humildes, que só conheciam o valor do trabalho, e o contexto, na época, era que os filhos trabalhassem para ajudar em casa.
Foi trabalhar para onde?
Fui para a fábrica de enchidos onde os meus pais e o meu irmão trabalhavam. Odiava aquilo. Era tudo muito frio… Mas tinha de ser.
Como se iniciou nas canções?
Aos 14, 15 anos, comecei a perceber que aquele era o sonho. E acho que além da sorte, foi a vontade e a força de trabalhar para o sonho que fizeram com que tudo acontecesse. Havia um cantor romântico que eu adorava, o Mike Brant, e eu queria ser aquilo. Como também admirava o Carlos Santana, andava ali entre um e outro. Comecei a tocar na guitarra do meu irmão e quando ainda andava no liceu ajudava um feirante que vendia fruta, para arranjar uns trocos e ter umas aulas de guitarra, com um chinês que era muito bom.
E a partir daí?
Com o meu irmão e dois primos, criei uma banda de baile que era os Irmãos Cinco. Com os primeiros cachês, comprei uma guitarra elétrica e aí foi o início do sonho. Tocava e cantava canções do José Cid, do Marco Paulo e de outros. Começámos a ter sucesso na comunidade, em Dourdan, que fica a 50 quilómetros de Paris. O meu irmão tocava baixo, mas era acima de tudo o meu motorista porque eu não tinha carta. Durante 10 anos, essa banda foi o meu conservatório.
Sentia-se predestinado para a música?
Sobre o destino tínhamos um debate interminável e ficaríamos sem resposta, mas é um debate de que gosto. Já tive muitas conversas sobre fé com o D. Américo [Aguiar].
A fé tem uma força tremenda, porque se acreditarmos numa coisa com muita força, há fortes probabilidades de a conseguirmos. Um dia, o Jorge Jesus disse-me uma coisa que guardei: “O melhor treinador do mundo é a força de um golo.” Ou seja, se um jogador está de rastos e marca um golo, ganha uma energia como se acabasse de entrar em campo.
Entretanto, conheceu a Fernanda.
Sim, a Fernanda também era emigrante em França e casámo-nos. Eu tinha 21 anos, na altura em que trabalhava na fábrica e tinha a banda.
Quando é que passou a dedicar-se exclusivamente à música?
Aos 25 anos, quando me apresentei no Prémio Nacional de Música, na Figueira da Foz. Foi em 1988 e não ganhei, quem ganhou foi a Dora [vencedora do Festival da Canção de 1986], mas dei mais um passo para o sonho. Deixei a fábrica para me dedicar à música e foi um risco até porque já tinha um filho, o Mickael.
E correu bem?
Não. Durante uns quatro ou cinco anos gravei canções para quase todas as editoras deste País, os discos não funcionavam e ganhava muito pouco. Até que um dia, em 1993, há uma canção, A Minha Guitarra, que resulta muito bem, sem se saber porquê. A partir daí, dei muitos espetáculos e vendi muitos discos cá, mas era visto como o emigrante. Não era nada mediático e hoje tenho pena de o ser tanto.
Porquê?
Porque qualquer coisa que se escreva sobre mim transforma-se num buzz. E quando não são verdades, não gosto e lamento que alguma imprensa trabalhe dessa forma.
Quando fez o primeiro concerto no Olympia de Paris?
A 16 de janeiro de 2000. Eu dava muitos concertos de rua oferecidos pelas câmaras e tinha muitas dúvidas se as pessoas iam pagar para me ouvir no Olympia. Mas foi um sucesso e isso encorajou-me a arriscar ainda mais, e pouco depois fiz o Coliseu de Lisboa. E esse, sim, foi o concerto que mais me marcou
porque eu era um português fora de Portugal e esgotar o Coliseu foi muito importante. A seguir, fiz a Altice Arena que esgotou também. Isto tudo em três anos. Entretanto, já vou em cerca de 25 concertos na Altice.
E o próximo?
Agora estou muito focado em gravar mais um disco, não sei se será o último… Só faço planos a curto prazo. Vou fazer também uma turné, que começará em Paris.
Ainda vai muito a França?
Só em trabalho, porque saio pouco de casa, mas tenho saudades de lá ir rever os amigos. Estou muito agarrado às minhas cadelas, a Molly e a Roxy, que eram da Sara. Elas ajudam-me muito neste caminho. Não há um beijo que dê à Molly, que tem muito da personalidade doce da Sara, em que não pense nela.
Aos 60 anos pretende abrandar?
Os 60 são iguais aos 40 e aos 25. A música, os concertos e o carinho das pessoas ajudam-me imenso. Vou continuar a cantar com o mesmo entusiasmo e o mesmo ritmo. Isso alimenta-me muito.
Como se sente quando as fãs lhe dizem que é
sexy?
Acho piada. Gosto, mas nunca me achei sexy nem nada que se pareça.
Evita ir a sítios com muita gente?
Não. Vou a todo o lado. Adoro ir à praça comprar o peixe e os legumes. As pessoas são maravilhosas comigo. A última vez que estive no mercado de Campo de Ourique, saí de lá com flores e tudo. É tão bom.
“A imprensa foca-se no Ivo [Lucas], mas a primeira pessoa que causou o acidente não foi o Ivo”
“Não faço nada para prejudicar a minha saúde, mas também não me esforço para durar muito tempo”
Ainda vai todos os dias ao cemitério?
Vou duas a três vezes por semana e sempre que me apetece. Converso com a minha filha durante uns 10, 15 minutos, e são poucas as vezes em que saio a chorar. Faz-me bem ir lá.
Teve apoio espiritual?
Procurei mas não tive. Nessa procura espiritual conheci pessoas interessantes e também muita coisa que não me fez sentido. Sou muito racional, mas quero desenvolver mais a parte espiritual. Gostava de ter tempo e de encontrar as pessoas certas para me entregar à meditação. Não sei se há mais alguma coisa para além disto, mas quero acreditar que sim. Conheci o [cardeal] D. Américo Aguiar no funeral da minha filha. Ele é uma pessoa muito especial, fez-me aproximar da Igreja e tem-me ajudado mesmo muito.
Antes da partida da Sara não acreditava em nada?
Zero! Eu tinha essas conversas com a Sara. Ela acreditava nas energias e às vezes ainda falamos sobre isso…
Há um Tony antes e outro depois da morte da Sara?
Claramente. Não sei onde fui buscar forças para suportar uma dor tão violenta. Há a dor do choque e depois a dor constante. Cheguei a consultar um psicólogo e apenas numa sessão aprendi uma coisa essencial: a importância de ter ferramentas para superar a dor. As minhas ferramentas são as cadelas que eram da Sara, que é algo que está vivo, e a associação em homenagem a ela – e se nos está a ver, não tenho dúvida que tem muito orgulho na família. E, claro, tenho os meus filhos e os meus netos. É assim que consigo continuar. Não tenho alternativa...
Tem falado em “pedidos de desculpa” que não existiram por parte de algumas pessoas. Em que é
que isso é importante para si?
Sobre o processo não tenho mais nada a acrescentar. A imprensa foca-se no Ivo [Lucas], mas a primeira pessoa que causou o acidente não foi o Ivo. E acho que era normal os arguidos terem a sensibilidade de me dizerem qualquer coisa, nem que fosse apenas “lamento”. Mas a minha dor profunda é só uma: a minha filha não estar cá e não haver nada que a possa trazer de volta.
Seis meses depois, sofreu um enfarte. Teve medo de morrer?
Foi a consequência da revolta. Como se explica a um pai ou a uma mãe, que perdem um filho, onde está Deus? Medo de morrer não tive, nem tenho. Se um dia me der outro [enfarte], só espero não ficar cá em mau estado. Não faço nada para prejudicar a minha saúde, mas também não me esforço para durar muito tempo. Por exemplo, tomo medicação, mas não deixei de fumar, apesar de o médico mo ter proibido. Embora ele saiba que eu fumo.
Como vai passar os seus 60 anos?
Nunca liguei aos meus aniversários e muito menos agora. Houve um ano em que o David e o Mickael estavam na Tailândia, à meia-noite do dia 29 ligaram-me a dar os parabéns e fui lá ter com eles.
Gosta de viajar?
Adoro. Aprecio a natureza e os locais históricos. Gostei muito da Austrália e tenho pena de não ter ido à Nova Zelândia. Quero dar uma volta pela Europa, ir à Áustria, que não conheço, e hei de ir a Budapeste, que era uma viagem que a Sara queria fazer comigo. Temos um planeta tão bonito e estamos a dar cabo dele. Não entendo como se gastam fortunas para um dia se poder viver em Marte, que é um calhau, onde nem há um arbusto.
As revistas dizem que tem uma namorada. É verdade?
Não vou alimentar esse tema. Mas se as revistas dizem...
Como é a sua relação com o Mickael e o David?
É maravilhosa. Se o núcleo já era unido, com a partida da Sara ficou muito mais. Protegemo-nos