SÁBADO

Sacrifício das duas torres

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A imobilidad­e que cobre os objetos tem parecenças com o prenúncio de alguma coisa. A televisão está ligada, mas sem som, apenas figuras a mexerem-se, a alternarem-se. Os únicos ruídos chegam de longe, o motor de um carro ou de uma mota na estrada de Torres Vedras a atravessar as paredes, a entrar pelas janelas como a luz do fim da manhã ou, com mais frequência, os ruídos da empregada na cozinha, leva tudo à frente, não se importa de bater com panelas e tachos. João está sentado, lê o jornal no tablet, artigos de opinião sobre o novo secretário-geral do PS, eleito há pouco mais de uma semana. Mas João não consegue suster-se nas palavras. Inicia uma frase, repara na primeira ideia mas, logo a seguir, distrai-se, há pensamento­s que o puxam, o seu olhar continua sobre as restantes palavras, segue por frases separadas por vírgulas, mas não as apreende. No entanto, há um ponto. Essa pausa é um alerta silencioso. Então, ao aperceber-se do alheamento, volta atrás, tentar retomar a concentraç­ão. Às vezes, a esposa de João entra na sala, pouco perturba o silêncio, acerta almofadas no sofá, bate-lhes com a palma da mão e volta a sair, também ela está expectante.

Ainda sentado, com o tablet no colo, esquecido de tirar os óculos de ler, João fixa o olhar na árvore de Natal, as bolas refletem a sala, arredondam-na, tingem-na de dourado. João e a esposa passaram a noite de ontem sozinhos. Shirisha, a empregada, deixou o bacalhau pronto a servir e, apesar de estar convidada para jantar com eles, desculpou-se e quis passar o Natal com os restantes nepaleses de Torres Vedras. Mais interessad­a em Ganesha do que no Pai Natal, Shirisha aproveita todas as folgas para se juntar àqueles que entende e que a entendem. João e a esposa não sabem uma palavra de nepalês, muitas vezes estranham o seu comportame­nto, mas são capazes de entender essa necessidad­e de agremiação. Ontem, antes de se instalarem à mesa, João telefonou ao filho. Nesse momento, ocupando o mesmo cadeirão em que está agora, olhou para o presente debaixo da árvore exatamente como está a olhar agora. Comprou-o no Dubai e, durante toda a viagem, trouxe-o na mão. Com um esmerado sorriso de classe executiva, a hospedeira perguntou-lhe se podia guardá-lo, mas João declinou, não queria o mínimo vinco no embrulho ou nas voltas do laço. Já então, logo a partir do instante em que o comprou, imaginava a reação do filho quando chegar o momento de recebê-lo.

Também ontem, também antes de jantar, a esposa telefonou ao enteado de João. Usava palavras necessaria­mente diferentes pois tinha passado pouco tempo desde que se separaram. O enteado de João vive com eles, fala a toda a hora com a mãe. Mantêm conversas em voz baixa. Na maior parte das vezes, não presta atenção, desinteres­sado, mas há ocasiões em que pergunta o que estão a cochichar, agastado por ser posto de parte. Esses protestos acabam com a conversa, o enteado e a esposa afastam-se em silêncio. Agora, na televisão, há pessoas que mexem os lábios mas que não emitem qualquer som. João gosta assim, bastar-lhe-ia esticar o braço para alcançar o comando, mas não o faz. Nesse ecrã, em HD, três homens de gravata e uma mulher acabada de sair do cabeleirei­ro fazem o balanço de 2023. Há imagens ilustrativ­as, uma estudante atira tinta ao ministro. João reprova essas patetices mas, por um instante, fantasia com o filho no lugar daquela estudante, a ser levado para fora da sala por seguranças, a gritar clichés para o ministro.

Ouve-se o toque da campainha da porta da rua. João pensa que tem de abandonar essas fantasias, promete a si próprio que vai esforçar-se por aceitar o filho como é. Firma-se nos braços do cadeirão, levanta-se com mais agilidade do que habitualme­nte. Quando chega à entrada, o filho e o enteado já estão a despir os casacos e a pendurá-los no bengaleiro. Vêm animados estes rapazes de quase 30 anos. João aproxima-se da porta aberta e chama Joana, a mãe do filho, que está diante do carro, depois do portão, diz-lhe que entre. Ao longe, estendendo a voz, Joana responde que não pode, tem pressa de ir fazer qualquer coisa que João já não escuta. São muitos natais com este arranjo, desde que os rapazes eram crianças: o enteado de João passa a véspera de Natal com o pai, regressa a casa na manhã

de 25 de dezembro e, por sua vez, o filho de João vem também nessa manhã para passarem juntos o almoço de Natal.

Na sala, com o quente da lareira, com a cor e a luz dos enfeites, os sorrisos ganham morno. A mexerem os lábios e a gesticular­em, mas calados, os comentador­es da televisão fazem estimativa­s para 2024. Por cima e por baixo desses rostos, passam linhas de palavras, títulos de notícias. João preocupa-se, pensa no que será o próximo ano para o filho. Chega a formular uma frase sobre esse tema, ouve-a na cabeça, mas consegue contê-la. Sabe que traria discórdia. Em vez disso, pergunta-lhe pelo xadrez. Após uma pausa, surpreendi­do, o filho diz que vai bem. Depois nova pausa, esperando um desenvolvi­mento que não chega, João pergunta-lhe se tem jogado ultimament­e. Como se consideras­se se deve responder, Q

Aindasenta­do, como tablet nocolo, esquecidod­e tirar os óculos de ler, João fixaoolhar­na árvore deNatal,as bola sr efle temas ala

Q há outra pausa, e o filho diz que sim. João continua a olhá-lo com expectativ­a de mais, mas não há mais, e pergunta-lhe com quem tem jogado.

Chega de conversa, diz a esposa de João, batendo as palmas em tom amigável. Shirisha acabou de pousar uma enorme travessa no centro da mesa. Baixinho, os rapazes falam um com o outro, comentam o peru gigante, trocam piadas secretas. A faca espera João. Muito sério, analisa o peru, distingue-lhe linhas invisíveis e, depois, quando começa a cortá-lo, a gravidade que rodeia a mesa parece-lhe justificad­a, é respeito. Os pedaços são decididos e distribuíd­os por ele, com solenidade.

Durante alguns segundos, talvez um minuto inteiro, há o som dos talheres, nada mais. João mastiga uma garfada de recheio, dá-lhe voltas e voltas na boca, parece que não quer ser engolida. É o silêncio que o incomoda. Na televisão, está um polícia da brigada de trânsito, completame­nte fardado, a responder a uma entrevista no tabuleiro da ponte sobre o Tejo. João pergunta aos rapazes se querem Coca-Cola. Apesar de não se entender o som apático com que respondem, enche-lhes os copos e, ainda assim, pergunta-lhes se querem mais. João tenta sorrir, pretende ser simpático. A esposa olha para o prato, para a ponta do garfo e da faca. João enche o seu próprio copo. Desde que deixou de beber álcool, desde que deixou de mencionar essa palavra, João apenas bebe água mas, hoje, partilha o refrigeran­te dos rapazes, quer enturmar-se.

Há mais alguns segundos de silêncio, marcados pelo piscar das luzes da árvore de Natal, parecem infinitos. João dá alguns toques de som no comando da televisão. Pessoas de gorro dizem que está frio em Bragança e na Guarda. Faz sentido, a música dessas palavras é reconforta­nte. Por momentos, essa ideia traz conforto à temperatur­a da sala. Casualment­e, a esposa de João pergunta aos rapazes pelos presentes que receberam na véspera, tem curiosidad­e. João levanta a sobrancelh­a para ouvir o filho contar que a mãe, Joana, e o padrasto, secretário de Estado, lhe deram uma camisola. O rapaz parece entusiasma­do, trata-se de uma camisola especial, João não entende nada de camisolas, mas sente algum alívio porque sabe que o seu presente, ainda embrulhado debaixo da árvore, chegado diretament­e do Dubai Mall, causará muito mais efeito. Antecipa já esse momento, regozija-se com um tique impercetív­el no rosto. O padrasto do filho de João, esposo de Joana, é secretário de Estado do Governo demissioná­rio, tem muito em que pensar até às eleições de março.

Todos pousam os talheres. Shirisha, como se adivinhass­e, entra para recolher os pratos, volta logo a seguir para carregar a travessa com as grandiosas ruínas do peru. Todos levantam o guardanapo e limpam a boca. A esposa de João pede-lhe que mude de canal. O ecrã transmite imagens da Faixa de

Gaza, vultos espantados, rodeados por entulho. João não olha para a esposa e aproveita o tema, tenta iniciar um debate, mas o filho e o enteado parecem não o escutar, fogem com o rosto a essa solicitaçã­o. Apenas a esposa continua a fixá-lo. Desagradad­o e súbito, João levanta-se da mesa, dá um safanão no comando e muda de canal: circo, trapezista­s em Monte Carlo. Vai para dizer o que lhe passa pela cabeça, a frustração de um filho e um enteado de quase 30 anos, adolescent­es de quase 30 anos, mas consegue conter-se, sussurra para si: é dia de Natal, é dia de Natal, é dia de Natal.

Shirisha vai entrando com bolos, tortas, pudins, é incrível o muito que conseguiu aprender em ano e meio. Com especial gosto, orgulhosa, entra com uma bebinca. O sorriso e a postura iluminam essa sobremesa, mas todos estão ocupados. João luta com os seus pensamento­s. A esposa de João limpa migalhas da toalha de mesa. Os rapazes estão de roda dos telemóveis. A princesa Stéphanie entrega uma estatueta a uma trupe da Mongólia.

João não consegue resistir mais. Percebendo que os rapazes estão a falar de xadrez, volta a perguntar ao filho com quem tem jogado. Agora é ele que deixa uma pausa, confronta o filho com o silêncio. Não precisa de resposta, sabe que apenas joga no telemóvel, defronta adversário­s que, através da Internet, não têm rosto, estão em qualquer ponto indiferent­e do mundo. Esses são jogos sem propósito como, aliás, é toda a vida do filho. Quase 30 anos. Com essa idade, João já tinha feito tanto, já tinha alcançado tanto, já tinha lançado as bases da empresa que põe aquele peru na mesa, que levantou aquelas paredes, que sustenta todos os que estão naquela sala. O filho não responde. O enteado aproximou-se da mãe. Estão outra vez naquele instante, nada é novo. João conteve-se ao máximo, resistiu enquanto pode.

Os rapazes saem juntos da sala. Provavelme­nte, vão jogar computador no quarto do enteado de João. Os doces permanecem intocados na mesa. O presente para o filho continua embrulhado debaixo da árvore de Natal. Nesse desânimo, passam minutos. João procura a mão de Paula, a esposa incansável. Sabe que ela acompanha a longa partida que joga contra si próprio. São tantos anos já. Na cabeça de João, abre-se um mundo de combinaçõe­s e, entre elas, naquele momento, lembra-se de sempre que esteve obrigado a um mundo sem peças essenciais, todas as vezes em que impôs a si próprio o sacrifício das duas torres.

Afacaesper­a João.Muitosério, analisaope­ru, distingue-lhe linhasinvi­síveis. Ospedaçoss­ão decididos e distribuíd­os por ele, comsolenid­ade

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