SÁBADO

Rei solitário

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Abre a porta devagar e dá um passo. Na distância, o som de anúncios da telefonia mistura-se com o cheiro a sopa, o cheiro a caixas de medicament­os sobre os armários. Mesmo tentando fechar a porta com mínimo barulho, o chão de madeira estala sob a presença de João e, de repente, a partir da cozinha, os passos da Dona Lucinda disparam na sua direção. Perante essa pressa, João acredita que a senhoria vem dar-lhe uma reprimenda. De entre os muitos erros que cometeu, quererá ralhar-lhe acerca de algum. No entanto, assim que ela entra no corredor, assim que pronuncia uma palavra, João percebe logo que se precipitou, é claro que a Dona Lucinda não vem com essa intenção. Em meio segundo, culpa-se por ter sido capaz de tal ideia, foi injusto. A Dona Lucinda só quer ajudar, explica-lhe que telefonou a menina Joana, o que é feito dela? João não responde, é ele que pergunta: deixou recado? Sim, deixou. Disse que estará no réveillon da Voz do Operário, pediu que fosses lá, precisa de falar contigo. A Dona Lucinda não percebe a mocidade, está baralhada, parece os seus novelos de linha branca quando pousa a renda em qualquer lado e o gato os apanha. Mas João não lhe tira dúvidas, tem urgência, não se importa de fazer barulho ao sair.

Anoitecida, a Praça do Chile observa quem caminha pelos seus passeios e parece sorrir. Estas fachadas de outros dias, de outras noites, alegram-se com o ambiente de festa, com as boas roupas, talvez a serem estreadas, com as luzes que ainda restam do Natal. João entra no metropolit­ano sem bilhete, não tirou passe em dezembro, quis poupar. Durante a espera e, depois, durante a viagem, com entrada em Arroios, paragem nos Anjos, no Intendente, com saída no Socorro, João lembra-se do Natal em casa dos pais: as idas ao armário das bebidas para goladas furtivas no medronho, a falta de Joana, essa mágoa espetada, a terrível discussão que teve com o pai no almoço de Natal, o pretexto foi o sequestro do avião da Air France na Argélia, podia ter sido qualquer outra coisa. Precisou de regressar para Lisboa antes do previsto, menos por causa desse desentendi­mento do que pela falta de Joana, falta de ar às vezes. Ao subir as escadas do metropolit­ano e entrar no Martim Moniz, ao entrar naquela hora da noite, respira com uma liberdade nova. Joana precisa de falar com ele, esse pensamento ilumina-o. Imagina Joana na cabine telefónica, a acertar as moedas, a discar o número da Dona Lucinda, a perguntar se ele está, a dizer o seu nome. Olha para a praça em volta e todas aquelas pessoas espalhadas parecem-lhe peças de xadrez, a praça é o tabuleiro.

Enquanto sobe, entre paredes e carros estacionad­os, inclinados no passeio, duas rodas no empedrado, outras duas no alcatrão, João leva ideias fixas: o xadrez e Joana. O xadrez está em toda a parte, em todos os movimentos possíveis, a esperança no primeiro lance da partida. Joana também está em toda a parte, é uma voz a chamá-lo, a esperança de que tenha esquecido o mau, de que só recorde o bom. Após duas semanas sem Joana, só silêncio e desânimo, João acredita que vão fazer as pazes, segue agora entre esperança e esperança. A essa velocidade, trepa por esta encosta de Lisboa. Num momento, o Largo da Graça está lá em cima, à sua frente, e, no momento seguinte, está lá atrás. Então, vê-se subitament­e perante as colunas, na entrada principal da Voz do Operário. Há uma multidão que entra e sai ao mesmo tempo, gente que fala alto, gargalhada­s.

Já debaixo de teto e de luzes brancas, entre taças de torneios antigos nas vitrinas, editais da direção nas paredes, ambiente de coletivida­de, João avança para a mesa onde se vendem senhas carimbadas, bilhetes de entrada. Um rapaz despachado ordena numa caixa notas de cinco contos, notas de mil e de quinhentos, faz os trocos, distribui as senhas. O som do conjunto chega ali distorcido, música transforma­da em ruído apertado pelas paredes grossas e antigas. O rapaz precisa de gritar o preço da entrada: um conto, mil escudos. João não acha caro e, também, não acha barato. Leva a senha estendida e entra na festa. O salão está cheio de vultos com copos de plástico e garrafas de cerveja, a soprarem baforadas de fumo para o ar. A iluminação imita uma discoteca pobre, uma pista de carrinhos de choque. O conjunto toca uma canção do Roberto Carlos, o calhambequ­e, casais dançam aos saltinhos diante do palco. Lá em cima, para se avistar de todo o recinto, está escrito com fitas de árvore de Natal: 1993/1994. João olha para esses números e, meio nostálgico, meio perplexo, surpreende-se com 1994, é incrível que estejam a ponto de chegar a esse ano. Parece irreal que estejam quase a atingir um número tão grande. Até custa pronunciar: mil novecentos e noventa e quatro. O presente toca o futuro.

João começa a procurar Joana, avança por entre corpos. Como se nadasse, precisa dos braços para abrir caminho. Olha para um e outro lado. Tenta não pisar ninguém, não derrubar bebidas, não se queimar em cigarros acesos. Passa um par de minutos talvez e, entre rostos, reconhece Paula. Está sozinha, esbraceja a chamá-lo. João aproxima-se, culpado e reticente, a memória da briga com Paulo acompanha esses passos. Mas Paula cumpriment­a-o com entusiasmo, sorri muito, tão feliz por vê-lo e, ao ler o rosto de João, explica-lhe imediatame­nte que já não namora com Paulo. Dá o copo a João, diz que a separação foi um alívio. João sente os lábios a queimar, ele próprio faz uma careta ao engolir esse líquido que não identifica. Paula quer falar. Noutra hora, João teria escutado detalhes com

João começa a procurar Joana.

Passaumpar­deminutost­alvez e, entre rostos, reconhece Paula.

Está sozinha, esbraceja a chamá-lo.

mais interesse mas, agora, tem pressa, urgência. Despede-se de Paula, deseja-lhe um bom ano, e continua a sua procura. Segue criteriosa­mente por um caminho que lhe permite cobrir toda a área do salão.

Quantas pessoas estarão aqui? Nunca foi bom a contabiliz­ar multidões. Em dias de manifestaç­ão, por exemplo, afirmava: estão aqui cinco mil pessoas. E os colegas chamavam-lhe exagerado, ou explicavam-lhe que estavam muito mais do que cinco mil pessoas. Enquanto procura Joana, calcula quantas pessoas estarão naquela festa, mas não confia nos números a que chega. Há gente alta e baixa, gorda e magra, todos os formatos de rosto. Na outra ponta do salão, entre essas anatomias, volta a reconhecer Paula. Continua com a mesma alegria de vê-lo, um entusiasmo que parece descabido. Desta vez, tem dois copos na mão, oferece-lhe um, a mesma zurrapa. Quando João termina esse, oferece-lhe o outro. Competindo com as colunas de muitos watts do conjunto, a tocarem o Bilú Teteia, Paula pede-lhe que fique um pouco. Mas, depois de esvaziar o segundo copo, João volta a despedir-se e volta a desejar-lhe um bom ano.

Já falta pouco para ter sondado todo o salão. Teme que possa ter passado por Joana sem a ter visto. Duas semanas serão suficiente­s para deixar de reconhecê-la? Pensa que, se ela se ausentou por instantes, ida à casa de banho ou ao bengaleiro, podem ter-se desencontr­ado. Pensa que, se ela se deslocou na sala, pode tê-lo fintado sem querer. João começa a mentalizar-se que vai ter de iniciar uma segunda ronda quando, lá ao fundo, a cerca de dez metros, a vê. Está ao lado de Paulo. De repente, também ela o distingue. Os seus olhares ficaram parados um no outro.

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O rapaz dos bilhetes deixou-a entrar sem pagar. Ao entregar-lhe a senha, fez por tocar-lhe na mão, disse que ficava livre às três da manhã. A partir dessa hora, abriam as portas, toda a gente podia entrar de borla. Joana recebeu o pequeno papel, esfregou os dedos para eliminar a memória daquele toque e, hostil, olhou para o rapaz de frente. Lá dentro, a música demasiado alta, as pessoas demasiado eufóricas. Joana não pertencia àquele momento, avançava pela multidão e, dentro de si, levava um conflito, dúvidas chocavam umas nas outras, incompleta­s e imperfeita­s. Levava perguntas que escancarav­am a boca e engoliam o mundo inteiro. Esse abismo contrastav­a com o que a rodeava, gente que olhava para a vida e que apenas via a superfície. Quero buzinar no calhambequ­e, o conjunto tocava uma canção de Roberto Carlos, e bamboleava-se no palco.

Joana estava ali a convite de Paulo, foi ele que lhe disse para ir, enviou o recado por uma amiga comum. Ela tinha convidado o João, um telefonema, um recado, precisava de contar-lhe e partilhar a angústia. Como reagiria? Eis uma das muitas perguntas que a consumiam. Imaginava-lhe inúmeras reações, nenhuma era fácil e boa porque a notícia era difícil e má. Perdida, a sentir-se perdida, Joana não encontrava nem Paulo, nem João, qualquer um deles lhe serviria de amparo naquele momento. O seu corpo seguia à deriva, encaminhad­o por encontrões de gente que se virava de repente, que dava alguns passos de costas, que tropeçava nos atacadores desatados. Ao longe, distinguiu Paula. Sim, era ela. Estava sozinha, segurava um copo, muito compenetra­da. Joana levou a mão ao rosto, como se estivesse a coçar-se, a limpar uma migalha, escondendo-se assim.

Felizmente, Paula não a viu. Joana não queria envolver-se em conversas superficia­is, ter de fingir. Olhou para as fitas brilhantes junto ao teto: 1993/1994. Esses números constrangi­am-lhe o peito, o coração custava a bater, os pulmões respiravam com dificuldad­e. O que podia esperar de 1994? Onde estará daí a um ano? Estes pensamento­s davam-lhe tonturas, sentia o rosto afogueado. Só não desfalecia porque essa seria uma situação desagradáv­el, daria muito trabalho.

Avistou Paulo. Sôfrega, caminhou na sua direção. Acreditou por instantes que assim se poderia salvar. Ao chegar junto a ele, percebeu que não tinha salvação possível. Bilú Teteia, como uma buzina sem misericórd­ia, o volume muito acima do aceitável, o cantor do conjunto berrava, Bilú Teteia. Joana e Paulo não precisaram sequer de encarar-se. Joana sabia que Paulo sabia que ela sabia e, por sua vez, Paulo sabia que Joana sabia que ele sabia. Eram espelhos um do outro, havia uma estranha simetria, geometria justa, mas incómoda naquele momento.

Com frequência, as pessoas em volta olhavam para o relógio, queriam saber quantos minutos ainda tinham de 1993. Um ano antes daquele momento, Joana não conhecia João, não conhecia Paulo, nunca tinha assistido a uma partida de xadrez em que os jogadores batiam no relógio após cada lance. Onde estará daí a um ano? Tinha esta pergunta a asfixiá-la quando, lá ao fundo, entre a multidão, a cerca de dez metros, distinguiu o rosto de João. Os seus olhares ficaram parados um no outro.

Joana toca com os dedos no cotovelo de Paulo. Este segue a linha para onde aponta a atenção dela, repara na presença de João e afasta-se imediatame­nte. Após um compasso, João caminha na direção de Joana, precisa de saber. Ficam frente a frente, há uma pergunta no rosto dele, há pena no rosto dela. Então, o cantor do conjunto, acompanhad­o por guitarrada­s a despropósi­to, batidas na bateria também a despropósi­to, arma uma algazarra e, seguindo a sua voz amplificad­a, todo o salão da Voz do Operário começa uma contagem regressiva, em coro: dez, nove, oito. João e Joana estão imperturbá­veis e, logo a seguir, continuam imperturbá­veis debaixo da explosão de vozes, confettis, rolhas de garrafas de espumante, gente a abraçar-se. Joana espera por ser ouvida. Num momento, aproxima-se do ouvido de João e, sem levantar a voz, conta-lhe que está grávida. Mas não vão ficar juntos. É o tom das palavras, a expressão do rosto, é tudo a dar essa segunda notícia: não vão ficar juntos. Envoltos por um mundo que ignoram e que os ignora, já entrados no ano novo, permanecem assim. Joana distingue em João um desespero que lhe conheceu nas poucas partidas em que ficou apenas com o rei no tabuleiro, contra duas ou três peças adversária­s, a lutar pelo empate. Uma situação a que os xadrezista­s chamam “rei solitário”. ●

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