SÁBADO

Pandemia motivacion­al

-

AO QUE PARECE,

toda a gente está cheia de soluções para oferecer, só não se põe bom quem não quer. Os problemas são coisas dos outros, dos que não sabem gerir as emoções, a saúde mental, a vida. São preguiçoso­s emocionais que precisam de ajuda, e essa ajuda – por incrível que possa parecer – está em contas de Instagram e de Tik Tok. Podemos ser salvos de nós próprios a custo zero, por pessoas que nos dizem o que temos de fazer para sermos “a melhor versão de nós próprios”. Já não há pudor, porque não há crime nem castigo. Pode-se aconselhar sobre saúde mental como se fosse uma conversa de café que inchou até ser uma religião. Somos todos fracos porque queremos, porque se procurarmo­s bem há algures uma frase feita à nossa espera que nos salva de tudo e de todos. Temos de ser valentes e reagir, seguir uma série de passos que nos aconselham, e em menos de nada vão ver que vai ficar tudo bem. A Internet está cheia de salvação por todo o lado. Como se já não tivesse bastado uma pandemia, estamos agora a viver outra: uma pandemia motivacion­al. As pessoas que mais me inspiram são aquelas que inspiram pelo que são, e não pelo que dizem que devemos ser. Sempre que descubro alguém a vender saúde mental e uma vida melhor – sem nenhuma formação para isso –, nunca consigo encontrar nela a pessoa que quero ser. Vejo sempre alguém preso por fios, tudo confuso lá dentro, a falar para ela própria, a tentar que os outros acreditem que ela é capaz de tudo aquilo que nos diz que podemos ser. O mental coaching das redes sociais não nos salva dos problemas, é só uma pastilha elástica para o sofrimento. Acreditem ou não, há psicólogos e psiquiatra­s com habilitaçõ­es para isso, pessoas que aprofundar­am o saber sobre os recantos difusos e contraditó­rios da cabeça humana, pessoas com cursos onde aprendem que gerir as emoções dos outros é um comboio que pode saltar dos carris a qualquer momento. O respeito pela cabeça dos outros é matéria do sagrado. Sabemos lá o que cada um passou, o que está a passar, com quem passou, onde está agora aquela névoa e o que precisa de ouvir para não se atirar para o sítio errado. Não vamos todos conseguir ser o que queremos, nem vamos conseguir cumprir todos os nossos sonhos só porque os sonhamos. Vender a ideia contrária é propagar esta noção perigosa de que se consegue sempre tudo, e que para isso basta decidirmos que vamos conseguir. E depois, onde fica a frustração quando a porta não se abrir? Quem vai amparar os que não conseguira­m o que sempre sonharam, se lhes prometeram que basta querer muito para acontecer? É nesse terreno argiloso que nasce uma outra frustração, a de nem sequer conseguir o que os outros dizem ser tão fácil. Não somos a coisa mais importante do mundo e toda a gente que se adapte a nós, porque isso é o tipo de mentalidad­e que só uma besta egocêntric­a é que consegue aguentar durante muito tempo. Não “somos o que somos, e quem

Sabemos lá o que cada um passou, o que está a passar, com quem passou, onde está agora aquela névoa e o que precisa de ouvir para não se atirar para o sítio errado

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal