SÁBADO

Xeque- mate

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O pedinte dirige-se a eles, Paulo leva a mão ao bolso de dentro do casaco, mas Joana puxa-o pelo braço que têm encadeado

Quando Joana pede ao motorista que os deixe sair ali, numa ponta do Rossio, Paulo surpreende-se, como acontece sempre que Joana toma decisões sem apelo. O motorista abranda, prepara-se para encostar o carro, já assistiu muitas vezes a mudanças súbitas de planos, está acostumado a receber ordens da esposa do secretário de Estado. Por preguiça, Paulo resmunga, diz que vai ser reconhecid­o na rua, as pessoas sabem quem ele é ou, pelo menos, algumas pessoas têm a impressão de conhecê-lo de algum lado. Com toda a paciência, Joana explica-lhe que devem sair ali e fazer o caminho a pé justamente por esse motivo. Falta pouco mais de dois meses para as eleições, mostrar-se é campanha. Talvez assim alcance as suas aspirações já em março. Paulo sabe a que aspirações Joana se refere. No ano passado, teve de encontrar consolo ao ser reconduzid­o como secretário de Estado. Custou-lhe a falta de convite para um ministério, qualquer um. Durante a campanha, em inúmeras conversas, a atribuição de uma pasta tinha ficado implícita, havia um subtexto nesses diálogos de meias-palavras, claro que sim, a pasta parecia-lhe certa. A lembrança dessa desilusão faz com que abra a porta mal o carro se imobiliza, logo a seguir ao Nicola, já rua Áurea. O motorista não consegue chegar a tempo de ajudar Joana a sair.

Sem olhar para trás, avançando por essa calçada de estrelas no interior de losangos, trabalho rigoroso de mestres calceteiro­s, Joana e Paulo dão o braço e, ao mesmo tempo, sentem o sol de janeiro, o regresso ao quotidiano depois da passagem de ano, depois das festas, sentem a quinta-feira e o cheiro do Burger King no princípio da rua do Carmo. Juntos, sobem a rua. Na agenda de Paulo, coordenada pela sua secretária, está a descrição deste dia, 5 de janeiro de 2024. Com frequência, justamente quando estão a rever a agenda, Paulo faz uma piada, diz-lhe que ela é secretária de um secretário e, após uma pausa, acrescenta: de Estado. E fica à espera que ela ria. E ela, claro, ri, mais ou menos. A agenda deste dia, começa com o encontro matinal para onde se dirige. É um encontro periódico e, ainda assim, indispensá­vel, não pode ser adiado ou trocado por nada. Felizmente, o governo está demissioná­rio, as eleições estão marcadas e, por isso, a agenda está aliviada, não há fretes ou chatices.

Toca o telemóvel de Joana, o nome do seu filho no mostrador. No momento em que ela atende, toca o telemóvel de Paulo e, também ele tem, por sua vez, o nome do filho no mostrador. Muitas vezes, as pessoas

confundem os filhos de um e de outro. Desde há muito tempo que, quando têm alguma coisa para dizer sobre o filho ou o enteado, tanto Joana, como Paulo, explicam imediatame­nte a situação. Requer-se total atenção para entender esse esclarecim­ento: Paulo e Joana não têm qualquer filho em comum, vivem com o filho de Joana; Paulo tem um filho, que vive com a mãe, que é casada com o pai do filho de Joana. Ou seja, o padrasto do filho de Paulo é pai do seu enteado. Ou seja, a mãe do filho de Paulo é casada com o pai do filho da sua esposa. Não é tão difícil de entender como parece. Em algumas ocasiões, quase lhes apeteceu esquematiz­ar a explicação num papel, mas acharam ridículo e não chegaram a fazê-lo.

Quase em simultâneo, desligam as chamadas. Os filhos tinham queixas a apresentar e pedidos a fazer. O filho de Joana acordou na sua casa, em São Domingos de Rana, e, quando precisou de alguma coisa, não encontrou a mãe. O filho de Paulo acordou na casa da sua mãe, em Torres Vedras, e, quando precisou de alguma coisa, apenas encontrou Shirisha, a empregada, que não estava a conseguir entendê-lo. Nem Joana e nem Paulo comentam as conversas que tiveram ao telemóvel. Apenas desligam, deixam o silêncio ser atravessad­o pelo rumor da multidão. Voltam a dar o braço, dirigem o olhar para um pedinte sentado no chão. Ao identifica­r esse interesse, o pedinte dirige-se a eles e, com pronúncia do eixo Beato-Xabregas, diz: please help with anything, maybe just two euros. Paulo leva a mão ao bolso de dentro do casaco, mas Joana puxa-o pelo braço que têm encadeado.

O que trará este novo ano? Joana coloca esta pergunta a si própria e, caminhando pela rua Garrett, avança por essa reflexão vaga. Haxixe, haxixe, repete uma voz que se aproxima e se afasta. Joana acelera o passo. A reboque, ligeiramen­te atrás, Paulo pensa no xadrez. Não em lances específico­s, como é seu hábito, mas, à imagem da esposa, pensa em perguntas sem resposta: quem é mais importante, o rei ou a rainha? É certo que o rei segura a partida, tudo termina quando é eliminado, mas também é certo que a rainha se movimenta livremente por todo o tabuleiro, varrendo linhas inteiras, defendendo e atacando, enquanto o rei anda de casa em casa, arrastando-se para os quadrados contíguos, escondendo-se atrás de peões. Quem é mais decisivo, o rei ou a rainha?

Antes de virarem à direita na rua Serpa Pinto, Joana e Paulo olham ao longe para uma rapariga que, lá à frente, amplificad­a por um microfone a pilhas, canta Povo que Lavas no Rio diante da estátua do velho Chiado. Na esquina, há um grupo de homens com caixotes térmicos às costas, enormes mochilas quadradas. Daqui a pouco, levarão pizzas e sushi nesses caixotes térmicos e, pedalando bicicletas ou muito direitos em trotinetes, distribuir­ão mantimento­s por toda a cidade.

Animados pela sua boa forma física, por esta manhã luminosa e pelo início de 2024, Joana e Paulo chegam à porta do Círculo Eça de Queiroz. Diariament­e, passam ali milhares de pessoas que não distinguem aquela porta de todas as outras, que não imaginam o mundo por detrás do rosa discreto das paredes. Joana despede-se do marido, quis acompanhá-lo e entregá-lo. Essa foi a incumbênci­a que escolheu e que agora acaba de cumprir. A alguns passos de distância, assiste à maneira como a porta se abre a partir de dentro, como o marido se despede dela e entra. Joana fica sozinha e livre. O que vai fazer a seguir apenas lhe diz respeito a ela.

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O porteiro distingue o vulto de Paulo desenhado em contraluz nas cortinas brancas que cobrem as vidraças da porta, distingue o fato e a gravata. Ao pousar a mão sobre a maçaneta e puxá-la, vê Paulo com a nitidez de todos os contornos, está a despedir-se da esposa. Então, depois de se cumpriment­arem, já no interior da porta fechada de novo, o porteiro recolhe a gabardine, guarda-a num cabide.

João está sozinho, sentado numa das poltronas da primeira sala. Chegou a Lisboa de carro, vinha ele a conduzir, Paula sentada ao seu lado, casados há mais de vinte e cinco anos, onde estará ela neste momento? Provavelme­nte, em lojas do Chiado, a sentir a capital que, ali, não se escuta. Rodeadas pela cidade, no núcleo mais profundo do seu centro, as paredes do clube filtram Lisboa. Todo o ruído desaparece, não apenas o sonoro. Talvez por isso, João consegue reunir todos os seus pensamento­s com absoluta clareza, arrumados como a sala, asseados como a sala, os pensamento­s e a sala debaixo de luz serena, penumbra. João assiste à entrada de Paulo, já sem gabardina, com a roupa confortáve­l de estar em casa, o clube é uma espécie de casa. João levanta-se e, com as duas mãos, segura a mão do amigo.

Dizem as palavras de circunstân­cia que se esperam nos primeiros dias do ano. Após essas primeiras frases, passam para alguma troca necessária de informaçõe­s, decorrente da curiosa estrutura que os liga: cada um deles vive com o filho do outro, cada um deles é padrasto do filho do outro. Não encontram muito para

João e Paulo não levantam o olhar da partida que os une há tantos anos. Aquele que defrontam são eles próprios

dizer, apenas algumas trivialida­des sobre o Natal e o ano novo. Um e outro têm pressa de começar a jogar. João preparou o tabuleiro, está sobre a pequena mesa entre as duas poltronas. Tiram à sorte quem fica com as pretas e quem fica com as brancas. Essa conjuntura é pouco mais do que uma curiosidad­e. Ambos sabem que tanto lhes faz ficar com as brancas ou com as pretas. O jogo cumpre-se com qualquer cor.

Ainda antes do primeiro lance, um dos empregados vem perguntar a Paulo o que quer tomar. O secretário de Estado declina essa oferta por respeito à garrafa de água que João tem ao alcance da mão. Passa esse instante e, então, por fim, há o primeiro lance e, logo a seguir, o segundo. João e Paulo são rápidos porque conhecem as manhas um do outro, refletem-se. Jogam um contra o outro, como se jogassem contra si próprios. Não precisam de estar completame­nte concentrad­os e, por isso, noutros dias, começariam neste momento um diálogo sobre os seus interesses, a empresa de João, a carreira de Paulo. Essa conversa seria como uma partida intangível sobre a partida tangível, dois tipos de xadrez. As palavras comparávei­s a peças, as maneiras de dizer comparávei­s a movimentos, o espaço entre eles e o mundo que tocam comparável a um imenso tabuleiro.

Falta pouco mais de dois meses para as eleições, essa conversa é desnecessá­ria, fora de tempo. O que tinham para acertar está decidido. Na margem dos seus campos de visão, passam embaixador­es acreditado­s em Portugal, chegam para almoços produtivos. As suas vozes são um zumbido familiar, pertencem à decoração. João e Paulo não levantam o olhar da partida que os une há tantos anos. A cada lance, sabem que o adversário está numa posição em que eles mesmos estiveram noutro tempo e, por isso, como é lógico, não têm realmente um adversário diante de si. Aquele que defrontam são eles próprios. A simetria, mesmo que aparente divergênci­a, é sempre convergênc­ia. João e Paulo aprenderam essa e outras lições em conjunto. Um parecia negativo do outro, sombra com dimensão equivalent­e e, afinal, eram o mesmo.

A vida é composta por geometria, essa é a lei essencial de todos os sucessos e de todos os fracassos. O xadrez resume a existência. Há um momento em que se distribuem as peças, em que se dispõem nas suas posições. Depois, a geometria apresenta um número tão grande de possibilid­ades, que quase parecem ilimitadas. E talvez sejam. Talvez nada seja definitivo, nem mesmo o xeque-mate. ●

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