SÁBADO

ENTREI NA CORRIDA DESCALÇA E CHEGUEI À META

Uma década de discos de Gisela João é só um pretexto: antes de duas grandes festas, em Lisboa e no Porto, a fadista fala-nos da sua história, do momento que vive o género musical e da sua atitude perante a música e a vida.

- GISELA JOÃO Por Pedro Henrique Miranda

Para ela, tudo ainda parece um sonho. No velho armazém de vinho tornado o 8 Marvila, que será palco da celebração dos 10 anos de carreira em Lisboa, confessa que continua a sentir-se como uma Cinderela: a viver uma vida ideal, alegrement­e alheia às entranhas da indústria e maravilhad­a com a constante descoberta de si mesma. Eis Gisela João 10 anos depois de Gisela João, o disco que levou a rapariga de Barcelos ao estrelato.

Que significad­o atribui a este marco de 10 anos de carreira?

Honestamen­te, é um motivo para fazer uma festa. Tudo o que aconteceu nos últimos anos – a pandemia, a paralisaçã­o do setor, o facto de o meu último disco ter saído nesse contexto – deu-me vontade de fazer uma festa rija com quem esteve sempre comigo. Queria também fazer uma homenagem aos fadistas e músicos de fado que me influencia­ram tanto desde pequena, e graças a quem a minha vida teve um caminho que me deu tantas alegrias. Percebi que passaram 10 anos do lançamento do meu primeiro disco, e lembrei-me de que as pessoas costumam comemorar nestas alturas. Não são umas bodas de prata, devem ser de plástico [risos].

Que festa vai ser essa?

É uma mistura das duas coisas: revisitar aquele disco que mudou a minha vida e me permitiu viver uma vida de sonho, e trazer também os companheir­os que trabalhara­m comigo durante estes anos, como o Xinobi, para dar continuida­de à festa. Vai haver ainda uma exposição e um espetáculo imersivo, em que se vai poder ver coisas que fizeram parte destes 10 anos: fotografia­s, vídeos, vestidos que usei ao longo destes anos…

Outra fadista talvez fizesse um espetáculo num Coliseu, mas escolheu o 8 Marvila em Lisboa e o Museu do Carro Elétrico no Porto para esta festa. Porquê?

Cresci a gostar de cantar fado, desde pequenina, mas na adolescênc­ia comecei a sair para festas de techno, trance e house – nunca passei pelo rock, sequer. Esse

Lembro-me de estar nas discotecas, agarrada aos meus amigos, a cantar-lhes ao ouvido fados tradiciona­is ao som das músicas que estavam a tocar

imaginário da noite viveu sempre comigo, e como o fado antigament­e era completame­nte do undergroun­d, acho que se adequa perfeitame­nte a este aspeto mais marginal. O armazém abandonado funciona tão bem para o fado quanto para a música mais tecnológic­a.

A eletrónica era uma influência?

Foi sempre. Lembro-me de ouvir muito house nos anos 90 – François Kevorkian, DJ Harvey –, foi algo muito presente na minha formação. Lembro-me de estar nas discotecas, no Indústria, no Porto, ou no Vaticano, em Barcelos, agarrada aos meus amigos a cantar-lhes ao ouvido fados tradiciona­is ao som das músicas que estavam a tocar. Sempre tive essa luta. O fado agora ficou na moda, toda a gente ouve fado, toda a gente faz um novo fado – que eu não percebo o que é –, mas a verdade é que me lembro de, na altura, ser muito difícil as pessoas da minha idade assumi

rem que gostavam de fado ou estarem sequer dispostas a ouvir. Era uma luta constante provar que o fado é muito mais do que uma guitarra portuguesa e uma pessoa a cantar. É uma forma de vida, de sentir, e há outros sons que encaixam nisso.

Por exemplo?

Pode parecer estranho, mas há músicas que nem sequer são portuguesa­s e eu sinto que há lá alguma coisa de fado. O Jeff Mills, instrument­al e bastante pesado, tem ali uma carga que para mim é fado. Ou o Aphex Twin, o Nils Frahm, o Jon Hopkins. Sinto que há fado ali.

O que acha sobre as discussões acerca do que é ou não fado?

Não sou uma purista, não me considero conservado­ra, mas acho que é importante que não se percam matrizes, porque só assim as coisas conseguem perdurar no tempo. Eu gosto muito de ouvir música tradiciona­l do Azerbaijão, por exemplo, e quando ouço, reconheço. Para nós, portuguese­s, é bonito reconhecer alguma coisa que é nossa, feita de camadas e camadas de história que se encerram na palavra fado. Agora, o que é fado? Isso é uma discussão que vai sempre bater numa parede, porque tu dizes o que é para ti e eu digo o que é para mim e estamos aqui às cabeçadas sem chegar a lado nenhum. Em Portugal, devíamos perder menos tempo com essas discussões e apoiar-nos mais. É fácil olhar para uma pessoa e perceber se ela está feliz com o que faz. É a melhor coisa que pode haver, porque me diz que está a fazer aquilo em que acredita – é verdadeiro, é honesto.

Recorda-se do momento em que percebeu que seria fadista?

Isso, na verdade, só aconteceu quando saiu o meu primeiro disco, o Gisela João. Até ali sentia que era tudo efémero, que estava a ter sorte de as pessoas gostarem de me ouvir, e precisava de aproveitar. Cantar como profissão era uma coisa tão longínqua das minhas possibilid­ades. Sou uma miúda de Barcelos, nunca fiz parte do meio artístico, não havia nada que indicasse que podia fazer o caminho que fiz. Ultimament­e tenho pensado muito no quanto nós nos desmerecem­os das nossas vitórias, e que contra todas as expectativ­as o meu caminho é incrível. Entrei numa corrida descalça e cheguei à meta.

Não acreditava no seu sucesso?

Quando gravei o primeiro disco, vivia em Lisboa havia pouco tempo. Vim para cantar nas casas de fado, mas continuava a ter casa no Porto: era temporário e eu tinha era que arranjar um trabalho a sério. Quando saiu o disco eu cantava no Sr. Vinho, e nas casas de fado costumava haver CDs dos artistas à venda. Eu andava a gravar o meu disco e genuinamen­te pensava que ia vendê-lo nas casas de fado. E de repente isto tornou-se muito maior do que alguma vez poderia ter imaginado.

Há algum sentido em que hoje pense nesse tempo de forma diferente da que pensava?

Hoje, é muito importante para mim representa­r uma faixa de pessoas no nosso país que vêm do mesmo lugar que eu venho, onde almejar certas coisas quase não é permitido. Espero para o resto da minha vida poder servir de exemplo para crian

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