ENTREI NA CORRIDA DESCALÇA E CHEGUEI À META
Uma década de discos de Gisela João é só um pretexto: antes de duas grandes festas, em Lisboa e no Porto, a fadista fala-nos da sua história, do momento que vive o género musical e da sua atitude perante a música e a vida.
Para ela, tudo ainda parece um sonho. No velho armazém de vinho tornado o 8 Marvila, que será palco da celebração dos 10 anos de carreira em Lisboa, confessa que continua a sentir-se como uma Cinderela: a viver uma vida ideal, alegremente alheia às entranhas da indústria e maravilhada com a constante descoberta de si mesma. Eis Gisela João 10 anos depois de Gisela João, o disco que levou a rapariga de Barcelos ao estrelato.
Que significado atribui a este marco de 10 anos de carreira?
Honestamente, é um motivo para fazer uma festa. Tudo o que aconteceu nos últimos anos – a pandemia, a paralisação do setor, o facto de o meu último disco ter saído nesse contexto – deu-me vontade de fazer uma festa rija com quem esteve sempre comigo. Queria também fazer uma homenagem aos fadistas e músicos de fado que me influenciaram tanto desde pequena, e graças a quem a minha vida teve um caminho que me deu tantas alegrias. Percebi que passaram 10 anos do lançamento do meu primeiro disco, e lembrei-me de que as pessoas costumam comemorar nestas alturas. Não são umas bodas de prata, devem ser de plástico [risos].
Que festa vai ser essa?
É uma mistura das duas coisas: revisitar aquele disco que mudou a minha vida e me permitiu viver uma vida de sonho, e trazer também os companheiros que trabalharam comigo durante estes anos, como o Xinobi, para dar continuidade à festa. Vai haver ainda uma exposição e um espetáculo imersivo, em que se vai poder ver coisas que fizeram parte destes 10 anos: fotografias, vídeos, vestidos que usei ao longo destes anos…
Outra fadista talvez fizesse um espetáculo num Coliseu, mas escolheu o 8 Marvila em Lisboa e o Museu do Carro Elétrico no Porto para esta festa. Porquê?
Cresci a gostar de cantar fado, desde pequenina, mas na adolescência comecei a sair para festas de techno, trance e house – nunca passei pelo rock, sequer. Esse
Lembro-me de estar nas discotecas, agarrada aos meus amigos, a cantar-lhes ao ouvido fados tradicionais ao som das músicas que estavam a tocar
imaginário da noite viveu sempre comigo, e como o fado antigamente era completamente do underground, acho que se adequa perfeitamente a este aspeto mais marginal. O armazém abandonado funciona tão bem para o fado quanto para a música mais tecnológica.
A eletrónica era uma influência?
Foi sempre. Lembro-me de ouvir muito house nos anos 90 – François Kevorkian, DJ Harvey –, foi algo muito presente na minha formação. Lembro-me de estar nas discotecas, no Indústria, no Porto, ou no Vaticano, em Barcelos, agarrada aos meus amigos a cantar-lhes ao ouvido fados tradicionais ao som das músicas que estavam a tocar. Sempre tive essa luta. O fado agora ficou na moda, toda a gente ouve fado, toda a gente faz um novo fado – que eu não percebo o que é –, mas a verdade é que me lembro de, na altura, ser muito difícil as pessoas da minha idade assumi
rem que gostavam de fado ou estarem sequer dispostas a ouvir. Era uma luta constante provar que o fado é muito mais do que uma guitarra portuguesa e uma pessoa a cantar. É uma forma de vida, de sentir, e há outros sons que encaixam nisso.
Por exemplo?
Pode parecer estranho, mas há músicas que nem sequer são portuguesas e eu sinto que há lá alguma coisa de fado. O Jeff Mills, instrumental e bastante pesado, tem ali uma carga que para mim é fado. Ou o Aphex Twin, o Nils Frahm, o Jon Hopkins. Sinto que há fado ali.
O que acha sobre as discussões acerca do que é ou não fado?
Não sou uma purista, não me considero conservadora, mas acho que é importante que não se percam matrizes, porque só assim as coisas conseguem perdurar no tempo. Eu gosto muito de ouvir música tradicional do Azerbaijão, por exemplo, e quando ouço, reconheço. Para nós, portugueses, é bonito reconhecer alguma coisa que é nossa, feita de camadas e camadas de história que se encerram na palavra fado. Agora, o que é fado? Isso é uma discussão que vai sempre bater numa parede, porque tu dizes o que é para ti e eu digo o que é para mim e estamos aqui às cabeçadas sem chegar a lado nenhum. Em Portugal, devíamos perder menos tempo com essas discussões e apoiar-nos mais. É fácil olhar para uma pessoa e perceber se ela está feliz com o que faz. É a melhor coisa que pode haver, porque me diz que está a fazer aquilo em que acredita – é verdadeiro, é honesto.
Recorda-se do momento em que percebeu que seria fadista?
Isso, na verdade, só aconteceu quando saiu o meu primeiro disco, o Gisela João. Até ali sentia que era tudo efémero, que estava a ter sorte de as pessoas gostarem de me ouvir, e precisava de aproveitar. Cantar como profissão era uma coisa tão longínqua das minhas possibilidades. Sou uma miúda de Barcelos, nunca fiz parte do meio artístico, não havia nada que indicasse que podia fazer o caminho que fiz. Ultimamente tenho pensado muito no quanto nós nos desmerecemos das nossas vitórias, e que contra todas as expectativas o meu caminho é incrível. Entrei numa corrida descalça e cheguei à meta.
Não acreditava no seu sucesso?
Quando gravei o primeiro disco, vivia em Lisboa havia pouco tempo. Vim para cantar nas casas de fado, mas continuava a ter casa no Porto: era temporário e eu tinha era que arranjar um trabalho a sério. Quando saiu o disco eu cantava no Sr. Vinho, e nas casas de fado costumava haver CDs dos artistas à venda. Eu andava a gravar o meu disco e genuinamente pensava que ia vendê-lo nas casas de fado. E de repente isto tornou-se muito maior do que alguma vez poderia ter imaginado.
Há algum sentido em que hoje pense nesse tempo de forma diferente da que pensava?
Hoje, é muito importante para mim representar uma faixa de pessoas no nosso país que vêm do mesmo lugar que eu venho, onde almejar certas coisas quase não é permitido. Espero para o resto da minha vida poder servir de exemplo para crian