O REGRESSO DOS HOBBIES
COM A IDADE, ACABAM-SE AS BORLAS DA VIDA: TUDO TEM UM CUSTO E DE TUDO LEVAMOS O TROCO
Aidade mata – e enquanto não mata, mói muito. Com a idade, venho a perceber, o tempo só encolhe. As férias nunca mais voltarão a ser grandes e o fim de semana deixará de começar à quinta-feira, com a noite dos estudantes e toda sua cerveja, e passará a ser um dilema: melhor aproveitar ou descansar? Com a idade, acabam-se também as borlas da vida: tudo tem um custo e de tudo levamos o troco. Parece poesia ou filosofia em saldos mas não é. É tão simplesmentee o resumo da minha mais recente consulta com o médico de família.
Atrás. Sem máscara, ele parecia outra pessoa – um estra-nho a engolir um pequeno-almoço improvisado –, quando cruzámos na rua, minutos antes da hora marcada. Quando nos vimos de cara lavada, já no gabinete, sem migalhas nem fome, olhos nos olhos, ele percebeu de imediato o que me levara ali. Pormenores à parte, a maior parte daquela consulta seria dedicada à resposta a uma pergunta inocente: “A Ângela tem algum hobby?”
De todos os gestores e administradores da minha saúde física e mental (que, contando agora, são alguns, da nutricionista ao ginecologista, passando pelo meu treinador e pela minha higienista), ele era já o meu preferido – sendo aquele que via menos, ele partia em vantagem porque raramente me mandava suar, despir ou deixar de comer açúcar. Nele, tudo eram sugestões. No fundo, ele era o único que parecia não me julgar. Até àquele dia.
Eu não tinha hobbies desde a adolescência – aliás, eu tinha censurado, poucos dias antes, as pessoas que tinham paciência para fazer puzzles durante horas, dias, semanas, toda a vida. O meu médico, porém, levantava a questão: não seria boa ideia pensar nisso para não ter de pensar noutras coisas? Cedi, dando-lhe razão com a cabeça, nem tanto com o coração. Talvez por notar isso, mandou-me passar 24 horas a monitorizar os meus batimentos cardíacos. Como é que esta história acabou, então? Comigo a pesquisar lojas de puzzles, naturalmente. ●