Sai da frente
UMA PESSOA OUVE O DISCURSO
de Pedro Nuno Santos no encerramento do congresso do PS e pensa: os socialistas suecos acabaram com a planificação económica na década de 30 (do século passado); os socialistas alemães, em finais da década de 50; os trabalhistas ingleses tentaram no mesmo período (com Hugh Gaitskell), mas a coisa só aconteceu com Tony Blair, que enterrou a famosa cláusula IV da constituição do partido que defendia a propriedade colectiva dos meios de produção. Motivos?
A conclusão empírica de que nada substitui o mercado na criação de riqueza – e que aos governos da esquerda democrática está reservado um outro papel: políticas de redistribuição da riqueza para diminuir as desigualdades; garantia de serviços básicos para todos; construção de infraestruturas que a iniciativa privada não garante; e uma formação adequada para que os seus cidadãos possam entrar na “economia do conhecimento”.
Pedro Nuno Santos, que alguns apresentam por aí como uma brisa de modernidade, esteve a dormir na segunda metade do século XX – e, quando o acordaram, ele acreditou genuinamente que ainda estava na primeira metade.
A retórica cheira a mofo. As propostas para a habitação – limites às rendas de acordo com a evolução salarial – teriam como efeito a mesma paródia de sempre: falta de casas no mercado.
E a ideia peregrina de que cabe ao
Estado dirigir a actividade económica de um país – privilegiando certos sectores pela exclusão de outros – revela um conhecimento rudimentar sobre o funcionamento de uma economia moderna que eu só julgava possível em certas repúblicas do Terceiro Mundo.
A receita de Pedro Nuno, em Portugal, não seria apenas uma forma abusiva de distorção do mercado e de ineficiência económica. Seria a forma mais imediata de institucionalizar a corrupção e o tráfico de influências, com o governo a ser cortejado por grupos económicos em busca do novo favoritismo real. Já não basta o que basta?
Eis a ironia: para quem enche a boca com o 25 de Abril, seria um retorno ao 24 de Abril, quando o regime determinava largamente quais os grupos económicos “estratégicos” para o País.
GEORGEORWELL
dizia que a função do jornalismo é publicar tudo aquilo que o governo do dia não quer que se saiba. O resto é propaganda.
É a minha escola. Não apenas como praticante; como leitor. Isso explica por que motivo se contam pelos dedos de uma mão os jornais portugueses que me dou ao trabalho de ler.
Não sei se serei caso único. Não sei, aliás, se esta inclinação pela máxima anarquista (Hay gobierno? Soy contra!) se explica pelos maus hábitos adquiridos no saudoso Independente. Talvez sim. Talvez não. Nas razões costumeiras para a crise do jornalismo, fala-se de tudo: da Internet, dos constrangimentos financeiros, da mudança de hábitos dos leitores, da incompetência das administrações. Raramente se fala da automutilação dos jornais, que deixaram de cumprir o seu papel de vigilantes do poder para manterem uma relação monogâmica com ele.
Se isto acontece em grupos privados, imagine-se o que seria se o Estado, de forma discricionária, desatasse a brindar certos títulos com “empréstimos”, tenças ou coisas piores. Sem falar da palavra “nacionalização”, que voltei a escutar por estes dias, a propósito da crise vivida na Global Media. Por mim falo: a nacionalização de qualquer jornal seria a forma mais imediata de deixar de o ler. Há beijos da morte que são piores do que a própria morte.
Se uma imprensa livre é vital para a democracia (e é), convém que ela seja livre, ou seja, sem as manápulas do poder político. E a melhor forma de o garantir é mandando o Estado sair da frente – e os jornais saírem de baixo. O Estado sai da frente por via fiscal, por exemplo, não onerando quem produz notícias e até quem as consome.
Os jornais saem de baixo quando, voltando ao início, reaprendem que a sua função é publicar tudo aquilo que o governo do dia não quer que se saiba. O resto é propaganda. E a propaganda não conquista leitores. ●