A RECEITA DO SUCESSO
Ocheiro a coentros que vinha da cozinha dizia três coisas: a primeira, que, como sempre suspeitei, as famílias mais felizes são as imperfeitas, disfuncionais, que sabem o que é a tradição, mas escolhem a diversão; a segunda, que ninguém no meu núcleoeo fechado tem um diferendo genético com coentros; e a terceira,erceira, que há de nascer quem vai dizer à minha mãe que amêijoasêijoas à Bu-Bulhão Pato não são umm prato apropriadíssimo parara o almoço de Natal.
Estávamos, assim,, como que-queríamos: pão fresco ee torrado, água e vinho, fome e vontade de comer – tudo juntonto e bem temperado com aqueleuele ingre-ingrediente especial, a dinâmicanâmica fa-familiar. Na berlinda, aa matriarca era simultaneamente alvo dos elogios e das provocações. Com estofo para ambos, ria-se e fazia rir, encolhendo os ombros como quem dizia: com tanta vida às costas, querem que me aborreça logo agora que já nada me pesa?
Para semear a discórdia, um lado da mesa (o dos novos; ou mais novos; ou menos antigos) plantava a ideia de que lamentava não estar numa tradicional casa portuguesa, a comer um tradicional peru, cabrito ou até a boa e velha roupa-velha, como uma família tradicional. A simular-se ofendido, o outro lado da mesa adiantava-se nas amêijoas enquanto garantia
A PIADA FAZIA-SE SOZINHA: AS FAMÍLIAS DISFUNCIONAIS PASSAM POR MUITO, MAS COMEM MELHOR DO QUE AS FUNCIONAIS
que não tinha sido avisado de que nos tínhamos tornado conservadores da noite para o dia.
A piada fazia-se sozinha: as famílias disfuncionais passam por muito mas comem melhor do que as funcionais. Ali estávamos nós, a fazer de um 25 de dezembro um 15 de julho – só faltava o calor, a cerveja e a vista para o mar. E faltava pouco para vermos o fundo ao tacho quando a dona da casa, numa tentativa de elogiar a chef, disse: “As amêijoas são gordas; fortes; altas...”
A mesa inteira riu. Ela, impávida, serena, plena, só disse: “Pois, gordas.” O riso, descontrolado,trolado, gigante, familiar, amparou-parou-lhe a conconfusão: “Se for um elogio, podemos,pode não podemos?”demos?” Como se fosse um presente de Natal,Nata o mais novo da família resporespondeu-lhe: “Em caso de dúvida, podemos mas não devemos. NNeste caso, qual é a dúvida? EstãoEstã quentes e gordas.” ●