SÁBADO

A RECEITA DO SUCESSO

- ÂNGELA MARQUES

Ocheiro a coentros que vinha da cozinha dizia três coisas: a primeira, que, como sempre suspeitei, as famílias mais felizes são as imperfeita­s, disfuncion­ais, que sabem o que é a tradição, mas escolhem a diversão; a segunda, que ninguém no meu núcleoeo fechado tem um diferendo genético com coentros; e a terceira,erceira, que há de nascer quem vai dizer à minha mãe que amêijoasêi­joas à Bu-Bulhão Pato não são umm prato apropriadí­ssimo parara o almoço de Natal.

Estávamos, assim,, como que-queríamos: pão fresco ee torrado, água e vinho, fome e vontade de comer – tudo juntonto e bem temperado com aqueleuele ingre-ingredient­e especial, a dinâmicanâ­mica fa-familiar. Na berlinda, aa matriarca era simultanea­mente alvo dos elogios e das provocaçõe­s. Com estofo para ambos, ria-se e fazia rir, encolhendo os ombros como quem dizia: com tanta vida às costas, querem que me aborreça logo agora que já nada me pesa?

Para semear a discórdia, um lado da mesa (o dos novos; ou mais novos; ou menos antigos) plantava a ideia de que lamentava não estar numa tradiciona­l casa portuguesa, a comer um tradiciona­l peru, cabrito ou até a boa e velha roupa-velha, como uma família tradiciona­l. A simular-se ofendido, o outro lado da mesa adiantava-se nas amêijoas enquanto garantia

A PIADA FAZIA-SE SOZINHA: AS FAMÍLIAS DISFUNCION­AIS PASSAM POR MUITO, MAS COMEM MELHOR DO QUE AS FUNCIONAIS

que não tinha sido avisado de que nos tínhamos tornado conservado­res da noite para o dia.

A piada fazia-se sozinha: as famílias disfuncion­ais passam por muito mas comem melhor do que as funcionais. Ali estávamos nós, a fazer de um 25 de dezembro um 15 de julho – só faltava o calor, a cerveja e a vista para o mar. E faltava pouco para vermos o fundo ao tacho quando a dona da casa, numa tentativa de elogiar a chef, disse: “As amêijoas são gordas; fortes; altas...”

A mesa inteira riu. Ela, impávida, serena, plena, só disse: “Pois, gordas.” O riso, descontrol­ado,trolado, gigante, familiar, amparou-parou-lhe a conconfusã­o: “Se for um elogio, podemos,pode não podemos?”demos?” Como se fosse um presente de Natal,Nata o mais novo da família resporespo­ndeu-lhe: “Em caso de dúvida, podemos mas não devemos. NNeste caso, qual é a dúvida? EstãoEstã quentes e gordas.” ●

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