À PORTA DE AUSCHWITZ, A PACATEZ
No novo A Zona de Interesse, premiado em Cannes e escolhido pelo Reino Unido na candidatura aos Óscares, Jonathan Glazer filma a banalidade do mal. Como pôde a normalidade conviver com a morte?
O argumento do filme – que esteve nomeado a três Globos de Ouro, incluindo o de Melhor Filme Dramático – é uma adaptação livre de um romance de Martin Amis
NÃO É FÁCIL, quando se fala dos horrores do Holocausto, evitar a famosa expressão cunhada por Hannah Arendt aquando da sua cobertura jornalística do julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais estrategas da Solução Final (Endlösung): “A banalidade do mal.” E este poderia também ser um caminho para refletir sobre novo o filme de Jonathan Glazer, A Zona de Interesse (2023), acabado de chegar aos cinemas. Mas no fim temos a impressão de que naquela história não existe mal, apenas banalidade – e é essa a sua terrível e assustadora beleza.
O argumento, escrito pelo realizador, é uma adaptação livre do romance homónimo de Martin Amis, publicado em 2014. E é nesta liberdade que Glazer, autor de Debaixo da Pele (2013), investe para contar a sua história. Ao contrário do protagonista de Amis, baseado no comandante do campo de Auschwitz-Birkenau, Rudolf Höss, a personagem principal de Glazer é o próprio Höss e a sua família.
Esta identificação clara ajuda ao que o filme traz: um contraste brutal entre um quotidiano “normal” de uma família, tépido e sem dilemas morais ou tomadas de consciência epifânicas. Os dias da família Höss seguem-se um após outro, sem outro drama que não seja, a dada altura, a possibilidade de terem que abandonar o mundo ideal que criaram a paredes-meias (literalmente) com o apogeu de desumanização que se passava para lá dos muros.
Essa perceção do horror é entregue inteiramente ao espectador de 2024. As elipses são muitas mas facilmente decifráveis: o ruído constante das chaminés do crematório; o vapor dos comboios que chegam com mais um “carregamento”;
os gritos e os tiros que ao longe se ouvem; a roupa que chega a casa dos Höss e é distribuída pelas criadas. Nós, espectadores com a História a nosso favor, sabemos tudo. E talvez seja isso que é incómodo – que tenha existido um dia a dia igual ao de toda a gente naquelas condições.
O realizador filma uma família quase com a estética de um reality show: planos distantes, como câmaras de vigilância; travellings longos, que mostram uma felicidade que convive com uma maldade absurda que está lá mas não se mostra. Dada a ausência de conflito dramático a narrativa insiste no tédio que só para quem sabe parece inusitado. A personagem de
Höss (Christian Friedel) e a sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller), não despertam particular empatia ou antipatia. Estamos longe do sádico comandante de A Lista de Schindler desempenhado por Ralph Fiennes. Aqui reina o underacting porque na verdade para aquela família e em particular para o comandante de um dos mais sinistros lugares do mundo é apenas mais um dia no escritório.
Este registo levou a que A
Zona de Interesse tenha sido bastante criticado por esvaziar o Holocausto do seu significado, apesar dos prémios recebidos, um deles o Grand Prix do Festival de Cannes. Só que o interesse de Glazer não é explicar nem demonstrar, é confrontar-nos com o que podemos ser mesmo em circunstâncias extraordinárias. É isso que nos choca e nos faz refletir.
A dada altura, Höss recebe dois técnicos que lhe vêm demonstrar a eficácia de um novo sistema de câmara de gás e crematório, num registo banal de quem quer vender um carro novo. É esta normalidade que choca e é nela que encontramos o moralismo de Glazer: isto pode acontecer aqui e agora. Não por acaso há, a dada altura, um corte cronológico para mostrar duas empregadas de limpeza que, quase maquinalmente, limpam as montras do
É a coexistência da normalidade com o horror que choca e é nela que encontramos o moralismo de Glazer: isto, o pior da humanidade, pode acontecer aqui e agora
Museu do Holocausto em Auschwitz que exibem os objetos deixados pelos judeus exterminados no campo. Sem qualquer julgamento ou hesitação, fazem o que têm a fazer.
A Zona de Interesse apresenta alguns tiques formais mais arty de que Glazer gosta: separadores, câmaras térmicas para uma personagem, uma ou outra cena mais arrevesada. Mas é o registo de banalidade e contenção que é o trunfo do filme. Sem grandes diálogos, sem planos dramáticos, sem pedagogia para o espectador, A
Zona de Interesse transforma-se num filme eficaz que oferece tudo a quem o vê. Está longe de querer esvaziar o Holocausto – pelo contrário, afirma que o pior da humanidade pode acontecer na “normalidade”. O próprio Höss – que acabou por ser responsável pela gestão da aceleração do extermínio nos campos da morte – afirmou com serenidade pouco antes de ser enforcado, em 1947: “A minha família viveu bem em Auschwitz. Tudo o que a minha mulher e os meus filhos desejaram aconteceu ali. [Os meus filhos] eram livres e a minha mulher tinha o seu paraíso feito de flores.” Sim, o horror e o quotidiano podem conviver e é a essa possibilidade que devemos estar atentos. ●