SÁBADO

Gabinete de curiosidad­es

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

ANDRÉ VENTURA sempre foi um bom aluno. Acompanho a convenção do Chega e vejo, em versão comprimida, a mesma estratégia que Marine Le Pen aplicou ao seu partido quando tomou conta do negócio. Três imperativo­s: afastar os lunáticos, remover o lixo das montras e diversific­ar a clientela.

Em França, os lunáticos foram afastados, a começar pelo pai, Jean-Marie. O lixo também: o anti-semitismo, a saída do Euro (e da União Europeia), até a pena de morte – tudo para o caixote.

E, sobre a clientela, a Frente Nacional, hoje Reagrupame­nto Nacional, é um catch all party que pesca entre o “proletaria­do”, os trabalhado­res rurais, os jovens, os reformados – e, milagre dos milagres, os judeus e as minorias do arco-íris.

André Ventura quer o mesmo. Lunáticos? Alguns, mas nada que se compare ao bestiário do passado. Produtos tóxicos? Não se ouviu falar de castrações para pedófilos, penas perpétuas, remoções de úteros e outras curiosidad­es.

O que se ouviu foi o desejo de conquistar os reformados (nas pensões), os jovens (na habitação), os professore­s e os profission­ais de saúde (nas carreiras e nos salários), as classes médias (na baixa de impostos), os empresário­s (idem) e as forças de segurança (com “fundos” para isto e para aquilo).

Os partidos e os comentador­es, com toda a razão, puxaram pela calculador­a e decretaram a insanidade financeira das promessas. Fizeram bem. Mas o ponto é outro: antes da matemática, é preciso roubar a clientela aos outros. E quem pensa que o Chega é apenas um problema para a direita “moderada”, engana-se. Basta perguntare­m ao Partido Socialista francês, caso o encontrem.

Verdade que, ao contrário de Le Pen, o Chega ainda não gosta do pessoal do arco-íris. Mas até isso será tratado em devido tempo. Posso arriscar um palpite? Será quando o partido, à imagem do modelo francês, também mudar de nome.

AGORA QUE O TGV já foi lançado, ainda vou a tempo de pedir uma carruagem só para passageiro­s que sofram de “Síndrome de Sala de Estar”? Explico. Viajo no famoso Alfa com regularida­de. E tenho notado que, nos últimos tempos, esta estranha aflição tem aumentado entre os clientes. Em que consiste?

Sem pretender substituir o Manual Diagnóstic­o e Estatístic­o de Transtorno­s Mentais, diria que a síndrome se manifesta quando o cliente pensa que está na sua sala de estar e age em conformida­de.

Os primeiros sinais encontram-se no tom de voz quando realiza ou recebe telefonema­s: toda a carruagem toma conhecimen­to dos seus planos para esse dia, dos seus amores, dos seus desamores. Sabemos com quem o passageiro vive, com quem faz negócios, com quem dorme, com quem devia dormir, até com quem já não dorme. E o palavrão, sempre presente, é disparado com tal liberalida­de que até um membro de uma claque de futebol considerar­ia excessivo.

Depois deste espectácul­o, e como o paciente ainda pensa que está na sua sala de estar, há várias opções. Ouvir música é uma delas – ou, para sermos mais rigorosos, oferecer música a todos os passageiro­s, como se a sala de estar estivesse em festa e todos fossem convidados a participar.

Para quem gosta de serões mais pacíficos, a música é substituíd­a por alguns vídeos de conteúdo variável – humor, desporto, alguma pornografi­a soft –a que se juntam os risos do próprio espectador. Se estes risos vierem acompanhad­os pelos sons que ele emite enquanto mastiga, sorve e eventualme­nte arrota os petiscos que lhe servem no comboio, tanto melhor.

Um dado pode ser útil no tratamento destes casos: os passageiro­s de maiores cabedais (a chamada “classe conforto”) tendem a exibir estes comportame­ntos com maior regularida­de do que os pelintras da “classe económica”. Eis a prova de que o dinheiro não garante maior protecção contra a doença mental grave. Pelo contrário: o dinheiro convida a que o símio interno saia da sua jaula e se instale no cérebro para o dominar.

Se o TGV tivesse uma carruagem só para estes casos, isso já justificav­a o colossal investimen­to. E até parece que a estou a ver: uma carruagem blindada e revestida a cortiça, onde a matula grita ao telefone, ri alto com aquele vídeo de uma galinha a dançar a Machata e, já agora, corta as unhas dos pés tentando acertar com a ceifa nas testas uns dos outros. ●

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