Gabinete de curiosidades
ANDRÉ VENTURA sempre foi um bom aluno. Acompanho a convenção do Chega e vejo, em versão comprimida, a mesma estratégia que Marine Le Pen aplicou ao seu partido quando tomou conta do negócio. Três imperativos: afastar os lunáticos, remover o lixo das montras e diversificar a clientela.
Em França, os lunáticos foram afastados, a começar pelo pai, Jean-Marie. O lixo também: o anti-semitismo, a saída do Euro (e da União Europeia), até a pena de morte – tudo para o caixote.
E, sobre a clientela, a Frente Nacional, hoje Reagrupamento Nacional, é um catch all party que pesca entre o “proletariado”, os trabalhadores rurais, os jovens, os reformados – e, milagre dos milagres, os judeus e as minorias do arco-íris.
André Ventura quer o mesmo. Lunáticos? Alguns, mas nada que se compare ao bestiário do passado. Produtos tóxicos? Não se ouviu falar de castrações para pedófilos, penas perpétuas, remoções de úteros e outras curiosidades.
O que se ouviu foi o desejo de conquistar os reformados (nas pensões), os jovens (na habitação), os professores e os profissionais de saúde (nas carreiras e nos salários), as classes médias (na baixa de impostos), os empresários (idem) e as forças de segurança (com “fundos” para isto e para aquilo).
Os partidos e os comentadores, com toda a razão, puxaram pela calculadora e decretaram a insanidade financeira das promessas. Fizeram bem. Mas o ponto é outro: antes da matemática, é preciso roubar a clientela aos outros. E quem pensa que o Chega é apenas um problema para a direita “moderada”, engana-se. Basta perguntarem ao Partido Socialista francês, caso o encontrem.
Verdade que, ao contrário de Le Pen, o Chega ainda não gosta do pessoal do arco-íris. Mas até isso será tratado em devido tempo. Posso arriscar um palpite? Será quando o partido, à imagem do modelo francês, também mudar de nome.
AGORA QUE O TGV já foi lançado, ainda vou a tempo de pedir uma carruagem só para passageiros que sofram de “Síndrome de Sala de Estar”? Explico. Viajo no famoso Alfa com regularidade. E tenho notado que, nos últimos tempos, esta estranha aflição tem aumentado entre os clientes. Em que consiste?
Sem pretender substituir o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, diria que a síndrome se manifesta quando o cliente pensa que está na sua sala de estar e age em conformidade.
Os primeiros sinais encontram-se no tom de voz quando realiza ou recebe telefonemas: toda a carruagem toma conhecimento dos seus planos para esse dia, dos seus amores, dos seus desamores. Sabemos com quem o passageiro vive, com quem faz negócios, com quem dorme, com quem devia dormir, até com quem já não dorme. E o palavrão, sempre presente, é disparado com tal liberalidade que até um membro de uma claque de futebol consideraria excessivo.
Depois deste espectáculo, e como o paciente ainda pensa que está na sua sala de estar, há várias opções. Ouvir música é uma delas – ou, para sermos mais rigorosos, oferecer música a todos os passageiros, como se a sala de estar estivesse em festa e todos fossem convidados a participar.
Para quem gosta de serões mais pacíficos, a música é substituída por alguns vídeos de conteúdo variável – humor, desporto, alguma pornografia soft –a que se juntam os risos do próprio espectador. Se estes risos vierem acompanhados pelos sons que ele emite enquanto mastiga, sorve e eventualmente arrota os petiscos que lhe servem no comboio, tanto melhor.
Um dado pode ser útil no tratamento destes casos: os passageiros de maiores cabedais (a chamada “classe conforto”) tendem a exibir estes comportamentos com maior regularidade do que os pelintras da “classe económica”. Eis a prova de que o dinheiro não garante maior protecção contra a doença mental grave. Pelo contrário: o dinheiro convida a que o símio interno saia da sua jaula e se instale no cérebro para o dominar.
Se o TGV tivesse uma carruagem só para estes casos, isso já justificava o colossal investimento. E até parece que a estou a ver: uma carruagem blindada e revestida a cortiça, onde a matula grita ao telefone, ri alto com aquele vídeo de uma galinha a dançar a Machata e, já agora, corta as unhas dos pés tentando acertar com a ceifa nas testas uns dos outros. ●