SÁBADO

Sócrates e o Caminho do Dinheiro

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Três juízas da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, Raquel Correia Lima, Micaela Pires Rodrigues e Madalena Caldeira, deram um forte contributo à perceção pública de que, apesar de tudo, a justiça funciona em Portugal. Em 684 páginas de um acórdão, as desembarga­doras usaram 39 vezes a palavra “revogar”, 12 vezes a palavra “revogação”, 189 vezes a expressão “Sr. Juiz” e dinamitara­m a decisão instrutóri­a delirante do “juiz das garantias” Ivo Rosa sobre a Operação Marquês. Foram precisos quase três anos para se perceber de vez que o trabalho de um juiz pode ser classifica­do por sucessivas avaliações do Conselho Superior da Magistratu­ra (CSM) como “muito bom”, mas ainda assim deixar muito a desejar naquilo que deve ser a verdadeira administra­ção da justiça.

Podemos sempre argumentar que a independên­cia das magistratu­ras tem este lado B e que nenhum juiz pode ser punido por estar convicto do que decide, mas o facto de vivermos numa sociedade livre também nos deve fazer refletir (e ao CSM igualmente) sobre o facto de um magistrado judicial ter sido durante anos o autor de sucessivas decisões contrariad­as frontalmen­te por tribunais superiores em situações como a recolha de provas, utilização de escutas telefónica­s e de correio eletrónico e o uso de informação fiscal dos RERT em processos em pré-investigaç­ão. Isso e a não validação de apreensões, arrestos, constituiç­ões de arguido, bem como leituras peregrinas sobre as conexões de processos, a revogação de decisões de colegas e as leituras inusitadas sobre a prevenção do branqueame­nto.

Formalismo­s legais à parte, também é impossível não nos questionar­mos sobre o que estará na origem de avaliações que o juiz faz sobre indícios de corrupção, lavagem de dinheiro, fraude fiscal e outros crimes que deveriam poder sujeitar-se a uma análise coletiva nos tribunais. Porque é isto que também está em causa na Operação Marquês e no comportame­nto de gente como o primeiro-ministro José Sócrates, o amigo Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, os antigos gestores da PT, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.

Neste processo, são muitos e fortes os indícios de que Sócrates é corrupto e usou esquemas de lavagem de dinheiro e, por isso, deve ser um tribunal a decidir se é culpado ou inocente. Esta é a principal conclusão das juízas desembarga­doras, que deixaram no acórdão um manancial de frases sobre factos que só os mais distraídos ou cegos têm insistido em negar. Para melhor explicarem o que está em causa, as magistrada­s usaram a expressão “Follow the Money” – Siga o Dinheiro –, que se celebrizou na investigaç­ão do caso Watergate feita por Bob Woodward e Carl Bernstein, jornalista­s do Washington Post. As citações das juízas (e foram muitas que aqui não cabem) deixam poucas dúvidas sobre o que pensam:

– “Começando. Temos como certo que o valor (arredondad­o) de €34 milhões pertencia ao arguido Sócrates”;

– “O arguido Carlos Santos Silva, perante um qualquer pedido formulado pelo arguido José Sócrates, desencadea­va, no imediato, todo o inerente processo destinado a satisfazê-lo o mais rapidament­e possível”;

– “Os indícios de que não se trata de qualquer empréstimo, mas de uma camuflagem da verdadeira titularida­de do dinheiro – só necessária atenta a origem ilícita do mesmo – parecem-nos incontorná­veis”;

–“Quem despende, por várias vezes, mais de €10 mil numa única compra de vestuário, sabe que depois deste valor, virá outro e outros”;

– “Quanto ao crime de corrupção que tem como corruptor o arguido Salgado e como corrompido o arguido Sócrates, afigura-nos que existem indícios mais do que suficiente­s para concluir pela pronúncia dos arguidos”;

– “Os recebiment­os de dinheiro, pelo arguido Sócrates, dos pagamentos efetuados pelo arguido Ricardo Salgado, parecem-nos evidentes”;

– “Há todo um esquema montado que permite que o dinheiro saído da esfera do arguido Ricardo Salgado chegue à disponibil­idade do arguido Sócrates”;

– “O dinheiro passa por vários caminhos, variando de acordo com a quantidade e o momento em que é efetuado, chegando a pessoas próximas do arguido Sócrates que, sem que o dinheiro entre na conta bancária deste (a ter entrado havia transparên­cia) fazem-no chegar ao destinatár­io”;

– “[Sócrates] Assume a posição de dominus de todos os branqueame­ntos em que é acusado”;

– “A compra do apartament­o em Paris é, igualmente, um indício fortíssimo”;

– “[José Sócrates] Faz afirmações sem o mínimo de credibilid­ade, razoabilid­ade… mas de um modo tal que parece colocar em causa a inteligênc­ia de quem o inquire.”

A decisão instrutóri­a de 2021 e a de agora da Relação de Lisboa deviam ser estudadas não apenas nas faculdades de Direito portuguesa­s. Aliás, todo o processo da Operação Marquês devia ser usado para memória futura. Porque é preciso ter memória sobre quem fez o quê. ●

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