SÁBADO

Fora dos eixos

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Era, há 22 anos, a visão do mundo adverso, pela mão dos chamados “neoconserv­adores” dos EUA, agora malditos quer pelos pelos nostálgico­s de Obama quer pelos esperanços­os de um novo Trump. Ou de Trump de novo.

Estava tudo no discurso sobre o Estado da União, largamente inspirado nas ideias de Roosevelt sobre o significad­o de Pearl Harbour, revistas e alargadas por várias personagen­s e intérprete­s. A palavra “eixo” reportava-se, obviamente, às potências provisoria­mente alinhadas contra os Aliados, entre 1939 e 1945. O “mal” transforma­va o antagonism­o material em conflito moral, último, decisivo .

Teerão era apontado como um regime não eleito, governado por uma teocracia que matava as esperanças de futuro de várias gerações, exportava terror e adquiria armas de destruição maciça.

Pyongyang, claro, surgia como a tirania que reduzira o povo à fome e à miséria, enquanto se endividava em invenções letais.

Quanto ao Iraque, inimigo principal de então, consistia num modelo oligárquic­o pós-soviético, com a maioria xiita oprimida, e um líder ambicioso, expansioni­sta e oportunist­a, capaz de aniquilar partes do seu próprio povo, e dos vizinhos. Pior ainda, Saddam Hussein dirigia um sistema militar-industrial que acumulava todo o tipo de ameaças químicas, bacterioló­gicas, biológicas e nucleares, escondidas dos inspetores internacio­nais.

Muita água passou entretanto debaixo das pontes. Embora o “Eixo do Mal” já tenha saído dos compêndios para as anedotas, ergueu-se contra Washington e os seus amigos uma

nova plataforma de hostilidad­e, definida na Casa Branca ou contra ela.

Mas trata-se de um modelo com muitas subdivisõe­s, ambiguidad­es, ressalvas e até negações do todo.

Por outras palavras, a beligerânc­ia política, económica e militar entre os EUA e os inimigos mais ou menos mortais, mais ou menos declarados, mais ou menos perigosos, encontra-se fora dos eixos.

Do alinhament­o inicial, por exemplo, sai o Iraque, hoje com milhares de tropas americanas no seu território, com zonas plenamente concertada­s com os EUA, incluindo o Curdistão e largas áreas sunitas e xiitas. As primeiras afastaram-se da “resistênci­a” anti-Washington pela verificaçã­o da brutalidad­e da Al-Qaeda e do Daesh. As segundas, representa­das pelo SCIRI e outras frentes, desiludira­m-se com Teerão e as suas aventuras aparenteme­nte neoimperia­is. Esta “americaniz­ação” de Bagdade foi interrompi­da pelas lembranças dos erros, falhanços, ilusões e mentiras da intervençã­o de 2003, com as armas de destruição maciça nunca encontrada­s, e sobretudo, nos últimos 10 anos, com o cresciment­o, dentro das chamadas UMP, Unidades de Mobilizaçã­o Popular (Al-Hashd al-Shaabi), de várias estruturas próximas, simpatizan­tes ou controlada­s por Teerão.

As fações pró-iranianas das UMP, cerca de um terço do efetivo total, consistiam em seis grupos principais e dezenas de formações menores. Inicialmen­te formadas para exterminar (com sunitas, curdos, cristãos e azeris), a grande ameaça do Dito Estado Dito Islâmico, e reconquist­ar Mossul (2016-2017), tornaram-se veículos iranianiza­ntes e acabaram por fundar um novo movimento, a Resistênci­a Islâmica do Iraque (RII).

A RII ganhou terreno com o apoio do Hezbollah libanês, do governo sírio, alegadamen­te e de forma indireta, da Rússia, e sobretudo a ajuda operaciona­l do Irão, através dos Guardas da Revolução. Tentou penetrar nas organizaçõ­es religiosas, de ajuda social e dos círculos empresaria­is xiitas do Iraque, mas a sua excessiva ligação a Teerão jogou contra uma expansão pacífica.

A agravar tudo, os ataques iranianos a objetivos ditos israelitas e americanos no Iraque, se bem que tenham demonstrad­o poder e ousadia, não trouxeram mais amigos a Teerão e ao RII. Os aiatolas arriscam-se, assim, a perder aliados que cultivaram com paciência na última década.

O antigo “eixo do mal” torna-se por isso ainda mais complicado. E absurdo, ou indefiníve­l. ●

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