POLIFONIA DA OPRESSÃO
Primeiro romance publicado em Portugal da espanhola Lara Moreno, Três Mulheres na Cidade é um retrato vibrante, cru e poético sobre gentrificação, subjugação e violência de género.
O livro sobre três mulheres que vivem no mesmo prédio de um bairro de Madrid é já o terceiro romance da autora e revela uma escrita ágil, musical e ritmicamente ondulante
dentro de casa estivesse um animal.” Bastam nove palavras para Lara Moreno nos captar a atenção, e de repente estamos com Oliva no interior do seu apartamento em Madrid, uma mulher a enfrentar “um homem encolerizado não se sabe bem porquê”, a culpar-se (“qual foi o momento exato, que milímetro do lençol, que passo inoportuno em direção à cozinha, que gesto?”), enredados nas suas descrições e numa escrita ágil, ritmicamente oscilante: “Os gritos são como lanças que atravessam a casa”, “é a música oca do delírio, o troar vazio do poder, o teatro sórdido, sem corpo, sem palavra, sem luzes. A guerra para nada. Só para a ferida. Que ridícula é a ira quando não há nada verdadeiro para atirar ao outro.”
O começo de um romance é como os primeiros versos de uma canção, o isco que aproxima ou repele o leitor. Em Três Mulheres na Cidade, título do terceiro romance da escritora espanhola de 45 anos Lara Moreno – mas o primeiro a ser traduzido e publicado em Portugal –, o isco é eficaz. Não sendo a obra, cujo título original é La Ciudad, sobre violência doméstica nem só sobre Oliva.
O próprio título português desvenda a trama: este livro é sobre três mulheres, Oliva, Damaris e Horía, que vivem no mesmo prédio de um bairro de Madrid, La Latina. São as três personagens centrais, mas não únicas porque também a capital espanhola é protagonista, com os seus bares, as suas calles, os seus recantos e mercados e a sua gentrificação.
Oliva, Damaris e Horía são muito diferentes, “personagens que não são reais, mas que estão cheias de realidade”, como já as descreveu a autora. São mulheres de origens, estratos sociais e problemas bem distintos, mas todas oprimidas: Damaris, uma ama (toma conta de duas crianças) chegada a Madrid depois de a sua vida se ter virado do avesso na sua Colômbia; Horía uma imigrante marroquina.
Eis Madrid como espaço de ilusões esmagadas, uma capital europeia com as suas velhas idiossincrasias a morrer e os seus novos mitos a crescer, que nos confronta também com o racismo, a desigualdade e o machismo, mas também com o orgulho com que defendemos os contributos dos imigrantes, “para a economia e para a segurança social”, quais novos colonizadores gentis.
Oliva é talvez a personagem mais bem construída, talvez por – como Lara Moreno já assumiu em entrevistas – ser a que a escritora conhece mais intimamente. “É branca, é espanhola, tem uma carreira, tem o seu trabalho, é independente e separou-se do seu parceiro anterior sem nenhum tipo de tragédia ou trauma. Dá-se bem com o pai da sua filha, foi sempre uma mulher que se considerou livre… então, é óbvio que isto não lhe pode acontecer: isto é o que a sociedade te diz a toda a hora, o que te diz a tua família, o que te dizem os teus amigos, o que dizes a ti mesma”, apontou ao jornal elDiario, logo notando: “Mas o que tento contar aqui é que isto pode acontecer-nos a todas, em todas as partes do mundo, com mais ou menos recursos. Não estás a salvo de sofrer de violência de género.” ●