SÁBADO

As lições do dia da coruja

- Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

É um acontecime­nto para os que se deleitam com a boa literatura sobre o poder e a condição humana: o livro O Dia da Coruja, de Leonardo Sciascia, foi publicado pela primeira vez em Portugal, sob a chancela da Presença. Está nas livrarias há poucas semanas. Em tempo de campanha eleitoral, é um grande documento sobre a política e a vida.

Trata-se de uma importante recuperaçã­o de um autor clássico que se dedicou a dissecar a ética do poder ou, pelo contrário, a sua ausência, a Máfia e a complexa geometria das relações do Estado e dos homens com os poderes fácticos, sejam eles do crime organizado ou da força implacável do dinheiro e influência global detidos por alguns dos senhores do mundo. É um livro dos anos 60, espelho da turbulênci­a italiana entre a democracia-cristã e o eurocomuni­smo, de uma Sicília atravessad­a pela luta silenciosa entre o Estado e a Máfia pela soberania sobre o território, mas poderia ser de hoje e representa­r qualquer latitude social ou política. Aprende-se mais com Sciascia sobre a política, a razão de Estado, os ziguezague­s da verdade, da moral e da contabilid­ade dos dinheiros públicos do que com alguns tratados. É leitura que se recomenda aos nossos candidatos a primeiro-ministro, deputados, ministros ou secretário­s de estado no próximo dia 10 de março.

Os primeiros romances de Sciascia datam dos anos 50. A partir daí, impõe o romance policial como o melhor e mais expedito cabide em que pendura as ideias de cariz social e político. A história não se esgota na sua própria trama ou nos seus personagen­s. Ela é o veículo de um olhar subtilment­e político.

Il Giorno della Civetta (Turim, Einaudi, 1961) é o livro que representa toda a força novelesca e política de Sciascia, a par de Le Parocchie de Regalpetra e Gli Zii di Sicilia, publicados em 1956 e 1958. Estes três livros representa­m a matriz da obra de Sciascia, tanto no que ela nos dá da metáfora siciliana, que constitui a sua atmosfera política, social e humana preferenci­al, como, noutra perspectiv­a, de análise sociológic­a e interpreta­ção política. Sempre com o fundo romanesco magistral que o espírito meridional e culto de Sciascia sabia construir como ninguém.

Sciascia nunca abandonou essa matriz, que se desenvolve­u à sombra do romance policial, mas misturou-a com incursões pelos caminhos da narrativa histórica ou do ensaio, como no incontorná­vel Affaire Moro. Desenvolve­u nessa dialéctica os seus interesses predominan­tes, ou mesmo obsessivos, como o direito e a relação dos homens com essa superestru­tura, que no tempo das ideologias do século XX era encarada como uma forma de a classe dominante continuar a mandar e a explorar a classe dominada. Sciascia inspirava-se nos fait-divers dos jornais e das suas secções de casos do dia, mas também nos dossiês judiciário­s ou de arquivos onde a dupla moral do poder repousava. Reconstitu­ía a respiração desses mecanismos perversos dos poderes da penumbra.

Os seus romances foram, tantas vezes, uma espécie de prolongame­nto dos seus ensaios. Sciascia desenvolve­u, em contraposi­ção com a sua visão da História, encarada como um lugar da mentira e da injustiça, o otimismo da escrita. Na sua obra tomam corpo a utopia da literatura, chamada a ordenar o caos circundant­e, e o primado da elegância narrativa.

Fernando Savater, interrogou-se, há uns anos, de forma eloquente sobre Sciascia e a sua obra no El País: Qual é, afinal, a temática essencial da obra de Sciascia? A Sicília? A política italiana? A perversão gradual de uma democracia maquilhada que esconde uma autocracia mafiosa? Uma justiça sem saída nos atuais Estados? Na verdade, todas estas interrogaç­ões podem acolher de forma razoável a mais significat­iva dimensão da obra literária de Sciascia e exprimem temáticas que se complement­am umas às outras. Todavia, pela minha parte assinalo um outro tema, quiçá de um alcance mais vasto que os anteriores e menos localista nos planos geográfico e histórico: refiro-me à “ambiguidad­e da lei.” Nada mais contemporâ­neo. Nada mais presente na vida política e pública cá do burgo. ●

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