SÁBADO

Uma entrevista alucinante

-

Entrevista­r um imperador, mesmo amador, é sempre um desafio. Ou se fazem concessões permanente­s, e se reduz o papel do jornalista ao de mero animador, ou se colocam as perguntas necessária­s, e se arrisca o fim antecipado da conversa, o escárnio ou a expulsão do palácio.

Quando planeei e pedi uma entrevista ao Kremlin, no início do milénio, as regras eram estas: “vossa excelência” lidera uma comitiva de jornalista­s portuguese­s (sic), envia previament­e as perguntas (não só os temas) e não haverá novas questões, no seguimento das “aprovadas”.

Quando Armin Wolf entrevisto­u Vladimir Putin, em 2018, irritou tanto o perguntado que este iniciou todas as respostas com um sorriso de desprezo. E na retorsão houve sempre um descontrol­o, incluindo a qualificaç­ão de Prigozhin como “restaurado­r privado”. Mas Wolf nunca desistiu de penetrar a armadura do Czar putativo, e a entrevista tornou-se num exemplo do que é possível fazer, com decência e firmeza, e as palavras certas.

Na entrevista “fleuve” de Tucker Carlson, tudo começou com um ar de comédia. Putin desmentiu a primeira afirmação do ex-comentador (“disse que invadira a Ucrânia com receio de um ataque nuclear preventivo americano”) e pediu “uns segundos” para enquadrar a resposta.

Daí passámos a meia hora de versão putinista da história, desde o século nono até ao presente. Todos os chefes de guerra, senhores feudais, príncipes, regentes e reis, venerados pelos ucranianos, passaram a ser russos. A Ucrânia nunca existiu, até à sua fundação. Primeiro Putin disse que fora “invenção de Estaline”, mas depois corri

giu para o bode expiatório do costume, Lenine.

No meio da longa história alternativ­a, Carlson acordou da letargia. Primeiro interpelou: “Em que século é que estamos agora?”. Pacienteme­nte, o mestre Putin esclareceu: “Século XIII”.

Carlson insistiu: “Mas porque é que isto é relevante para a discussão actual?”. Mas até essas perguntas inocentes foram excluídas da versão oficial que o Kremlin distribuiu sobre a conversa.

Putin disse depois que a URSS era a Rússia (não algo diverso), apesar de esclarecer mais tarde que esta é hoje adepta do capitalism­o. Quanto à Segunda Guerra, reabilitou a teoria segundo a qual Hitler foi “forçado” a invadir a Polónia. O Pacto Molotov-Ribbentrop foi mencionado durante um segundo. Sergei Antonov, do “Comité 2024”, iniciou uma queixa-crime por reabilitaç­ão do nazismo por Putin, em contravenç­ão do Código Penal russo (artigo 345, 1 e 2).

Já sobre a “desnazific­ação”, uma das justificaç­ões para aagressãoà­Ucrân ia, Carlson foi inteligent­e :“Comoé que extingue uma doutrina?”. Putin, apanhado em falso, disse que bastava que Kiev aprovasse uma lei contra essa“ideologia ”. Ora tal norma já existe, desde 9 de abril de2015.Éa Lei 317-VIII, promulgada por Poroshenko, em vigor.

Na questão da sabotagem do Nordstream, explicou, também pressionad­o por Carlson, que a Rússia não divulga as provas de envolvimen­to da CIA, porque seria muito caro combater a globalidad­e dos media controlado­s pelos EUA. Apesar de “toda a gente saber quem foi o autor”.

Na anexação do Donbass e Crimeia, a versão é a habitual: os ucranianos é que começaram e foram os agressores. Incluiu-se a mentira de que o ataque aerotransp­ortado de Kiev ao aeroporto de Donetsk, em maio de 2014, se fez contra “civis”. A verdade é que se deu sobre uma força ocupante de 200 militares, incluindo chechenos, fortemente armada.

Já na sugestão Carlsonian­a de que nas guerras atuais há uma “presença sobrenatur­al”, Putin não teve paciência: “Não vejo nada disso”.

Até o trono reage, quando a loucura alheia supera a própria.

Mas não houve nada sobre as catastrófi­cas baixas russas na invasão, o facto de ter falhado a “desmilitar­ização” da Ucrânia (que tem hoje armas que nunca sonhara, em 2022), o golpe da Wagner, as razões da resistênci­a ucraniana, ou o estado real da economia russa.

Mas também o silêncio é uma forma de resposta. ●

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal