SÁBADO

Não fazer nada é muito

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

NÃO FAZER NADA parece muito mais fácil do que na realidade é. Implica muita coisa – tantos músculos e tanta vontade –, que à vista desarmada pode parecer que é só a ausência disso tudo que nos deixa imóveis. Cada vez que temos uma oportunida­de para não fazer nada, há qualquer coisa que nos faz sentir que devíamos estar a fazer tudo, que estamos a falhar às obrigações silenciosa­s que nos assombram. A culpa senta-se ao nosso lado e fica a olhar para nós, à espera que reparemos que ela ali está, que a vejamos pelo canto do olho, e nos levantemos para fazer o que passa bem sem nós. Conseguir estar parado, sem fazer aparenteme­nte nada, só a existir, pode ser a coisa mais difícil que acontece no dia de alguém. Não fazer nada é muito mais do que a frase diz. O ócio é um território de reflexão, é uma celebração do nada, é a constataçã­o da beleza de um olhar perdido na janela; é um intervalo entre o não fazer e o fazer, um estado que transcende a mera inactivida­de. São tréguas feitas com a sofreguidã­o de querer estar sempre a resolver, em todo o lado ao mesmo tempo, sempre disponível para o que há e o que há-de vir. Achamos que não temos direito a não fazer nada, porque nos convencemo­s que temos de estar sempre a fazer muito. Mesmo que dobremos os joelhos a antecipar o chão, a vida empurra-nos para a frente e damos por nós em passada rápida, sem sabermos se é a pressa ou o hábito que nos faz mexer assim. O corpo habitua-se a esse ritmo e estranha quando ele desacelera, como alguém que dorme num comboio e acorda porque ele subitament­e parou. A ausência de trepidação faz com que o alerta se espalhe pelos membros todos, disparam alarmes perante o sufoco do sossego, e obriga-nos a agir para que não reparem no deslize que cometemos. Fazemos muito, e em alguns casos fazemos muito mais do que aquilo que fomos feitos para fazer. Conseguir não fazer nada sem que pensemos no muito que poderíamos estar a fazer, esse sim, é o verdadeiro descanso. Vamos de férias e demoramos cerca de dois dias até ajustar o ritmo, até percebermo­s que ninguém está à espera de respostas nossas se nós decidirmos que não estamos disponívei­s para as dar, que o trabalho segue mesmo sem a nossa presença, e sobretudo que nós seguimos sem ele. Essa constataçã­o pode ser um baque, um contratemp­o nas contas que julgávamos saber de cor. O ócio é o troféu merecido depois das horas e horas que estivemos a ter de marrar de frente com a pressa dos dias. Há poucas pessoas capazes de não fazer nada sem estarem preocupada­s com o julgamento dos outros, porque o ócio é parente da preguiça, como uma malandrice, uma chico-espertice para não fazer, uma forma de nos rirmos de quem continua a levantar-se e a ir. Mas o ócio não é contra ninguém, antes é a favor de quem o faz. Inconscien­temente emitimos um julgamento interior sempre que vemos alguém parado no

Há poucas pessoas capazes de não fazer nada sem estarem preocupada­s com o julgamento dos outros, porque o ócio é parente da preguiça, como uma malandrice, uma chico-espertice para não fazer

jardim a olhar para uma árvore, sem mais nenhuma intenção que não seja a de contemplar; ou uma pessoa sentada num banco só a olhar para as pessoas que passam, como se esse “só” não fosse um punhado de coisas. Incomoda-nos ver que se atravessou alguém no nosso dia que não estava com o relógio a contar à mesma velocidade que o nosso. Estranhamo­s porque aquela pessoa reverteu o ritmo do mundo, parou o movimento da órbita e desencadeo­u um choque em cadeia a quem passa em ritmo acelerado. Parou porque quis parar, e conseguiu que o corpo obedecesse. Olhamos para o que está parado com a inveja de não ter aquela serenidade de quem não deve nada. Há fins-de-semana em que fazemos mais do que fazemos durante a semana. Inventamos qualquer coisa para nos cansarmos, não vá alguém perguntar e termos de responder que não fizemos nada que valha a pena contar. Chegamos a desejar que a segunda feira venha depressa, porque aí ao menos já sabemos como nos havemos de comportar sem parecer que estamos a fingir. Exigimo-nos exercícios de “mindfulnes­s”, porque queremos a atenção plena no que está a acontecer. Mas o que está a acontecer é muito, e querer que a cabeça ignore isso é dobrá-la ao meio e virá-la do avesso. Às vezes ouvimos dizer “vou ter muito tempo para parar quando morrer”, mas essa paragem é forçada, não é vitória nossa, é derrota do corpo. Não fazer nada é muito, porque o nada está cheio de coisas à espera de serem descoberta­s. É uma pena que às vezes sejam precisos sustos para percebermo­s o que já sabíamos antes – que parar é um parêntesis que a vida nos dá, e que aproveitá-lo é beber água fresca de uma fonte que é generosa no lago que faz nascer. O que é preciso é saber parar, para depois saber olhar. ●

Não fazer nada é muito, porque o nada está cheio de coisas à espera de serem descoberta­s

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JUAN CAVIA

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