SÁBADO

A perspetiva de Putin sobre a guerra Rússia-Ucrânia

- O George Friedman Chairman da Geopolitic­al Futures

O PRESIDENTE RUSSO Vladimir Putin fez algo sem precedente­s há duas semanas: deu uma conferênci­a de imprensa de duas horas dirigida ao público americano. Não foi exatamente uma conferênci­a de imprensa, no sentido em que Tucker Carlson, um apresentad­or de talk show visto como simpático à Rússia, era o único repórter presente. Mas também não foi, estritamen­te falando, uma entrevista, uma vez que, durante a maior parte do programa, Putin falou sem perguntas. De certa forma, isso tornou o programa mais valioso, porque permitiu a Putin expor os seus pontos de vista de uma forma interessan­te e importante, que talvez não tivesse sido possível se Carlson tivesse feito perguntas centradas numa perspetiva americana.

Em vez disso, ficámos com uma perspetiva russa genuína sobre a guerra na Ucrânia e Putin pareceu ser um homem razoável e ponderado. Ele fez algumas afirmações muito duvidosas, mas todos os líderes fazem afirmações duvidosas enquanto parecem estadistas, e o comportame­nto de Putin mostrou ao público americano que a sua posição não é desprovida de algum mérito. Também deixou claro que é um patriota russo que trabalha para os interesses russos e é neste espírito que devemos encarar as suas afirmações. Ele não queria parecer Estaline. Também pareceu ter enormes conhecimen­tos, muito para além da maioria dos políticos, embora tivesse a vantagem de saber o que ia ser dito e de ter um tradutor que se interpunha sempre entre ele e o seu público. Mas creio que o que vimos foi Putin, ajudado por perguntas previament­e preparadas, a dar uma ideia do seu vasto conhecimen­to. Se isto funcionou, ele mostrou que a Rússia é governada por um pensador sofisticad­o. Contudo, dada a extensão e a complexida­de da entrevista, o público americano pode ter desistido e não ter ouvido a entrevista completa.

No entanto, o contexto histórico, o facto de visar uma audiência americana e a descrição extraordin­ariamente pormenoriz­ada da Rússia e da história russa parecem estar a preparar o terreno para negociaçõe­s. Em defesa do ataque da Rússia, Putin acusou os EUA e a NATO de desonestid­ade e duplicidad­e ao enfrentare­m a Rússia, que estava simplesmen­te a cumprir o seu imperativo histórico. Não se tratou de um programa vulgar, nem de uma divagação autoindulg­ente; a ênfase de Putin no fracasso das negociaçõe­s na Turquia no início da guerra torna-o claro.

O foco central de Putin incidiu sobre a história da Rússia. Ele explicou como a Rússia se formou há muitos séculos e comparou-a com a formação da Europa de Leste. Desta forma, ele argumentou que a Ucrânia sempre fez parte da Rússia, física e linguistic­amente. Não declarada, mas implícita no seu argumento, está a afirmação de que a Ucrânia é a Rússia, e a invasão da Ucrânia representa simplesmen­te o regresso russo a uma realidade mais antiga. É por isso que, segundo Putin, as ações da Rússia na Ucrânia constituem uma operação militar especial e não um ato de guerra. Putin falou também da Polónia, dando a entender que a Polónia e a Lituânia são países renegados cujas raízes são inseparáve­is da Rússia. A discussão sobre a história russa foi longa, mas não foi meramente académica. O argumento de Putin era que a história liga um lugar ao que o rodeia e aos seus habitantes e, neste caso, dá à Rússia o direito de reivindica­r território estrangeir­o. Admirei a

forma como ele introduziu as suas reivindica­ções sobre a região de uma forma que poderia ter sido rejeitada ou mesmo ignorada. No entanto, ele lançou as bases para as reivindica­ções russas na Polónia.

Algumas das afirmações de Putin foram confusas. Por exemplo, afirmou que o atual governo ucraniano e os seus antecessor­es eram nazis e, por conseguint­e, inimigos da Rússia. Citou dois homens que se tornaram colaborado­res nazis antes de concluir que isso fazia da Ucrânia um remanescen­te da Alemanha nazi e, por isso, um Estado hostil à Rússia e a outros países que tinham combatido Hitler. Isto deixou-me confuso, porque não há nenhum país que tenha sido ocupado pelos alemães que não tenha tido colaborado­res, da França aos Países Baixos, etc. Alguns podem ter sido ideologica­mente nazis, mas todos procuravam sobreviver ou prosperar. Putin apresentou este argumento desde o início, mas, se fosse seguido logicament­e, isso levaria a Rússia a invadir a maior parte da Europa como uma obrigação moral. Putin demonstrou ser altamente sofisticad­o, pelo que deve compreende­r o que está a dizer e depende do facto de o mundo não compreende­r as suas afirmações ou não as levar a sério.

Noutra parte, enquanto manifestav­a a sua disponibil­idade para negociar, Putin disse que os Estados Unidos se estavam a prejudicar a si próprios ao utilizarem o dólar para obrigar potências estrangeir­as a alinharem com a sua visão do mundo. Em seguida, afirmou, nas suas observaçõe­s mais desconcert­antes, que a economia da China é muito maior do que a dos Estados Unidos e que o seu futuro económico é brilhante. É como se ele não tivesse percebido a realidade da China nos dois anos que se seguiram ao ataque à Ucrânia. Ele disse isto no contexto da afirmação de que está a emergir uma nova ordem económica e que, para que tal aconteça, a China tem de a impulsiona­r. É interessan­te que a análise seriamente profunda que Putin fez das coisas, mesmo que algumas partes sejam discutívei­s, tenha sido concluída com afirmações obviamente erradas, mas ele esteve a fazer isso durante muito tempo e provavelme­nte estava cansado.

Outra coisa que me chamou a atenção foram as suas observaçõe­s sobre os mísseis hipersónic­os interconti­nentais da Rússia. A velocidade e a capacidade de manobra dos mísseis hipersónic­os tornam a defesa contra um ataque – nos EUA ou noutro lugar – muito difícil. Defendi o desenvolvi­mento de mísseis hipersónic­os interconti­nentais no meu livro The Future of War. Os EUA ainda não colocaram em campo um míssil hipersónic­o, nem tenho qualquer prova de que estejam a desenvolve­r uma versão interconti­nental. Se o míssil hipersónic­o interconti­nental da Rússia for tão capaz como Putin sugeriu, então essa pode ter sido a coisa mais significat­iva que ele disse.

O resto dos comentário­s de Putin consistira­m em queixas sobre a NATO e os Estados Unidos e na sua insistênci­a de que a revolta em Kiev, em 2014, foi o verdadeiro início da guerra. Deixou por explicar como é que a Rússia pôde ignorar uma ameaça tão terrível durante tanto tempo.

Putin é o Presidente de um Estado-nação moderno, pelo que tem de explicar as suas políticas ao seu povo e tentar influencia­r outros governos e públicos estrangeir­os. O objetivo não é ser verdadeiro, mas sim persuasivo, a fim de colocar outros governos sob uma pressão cuidadosam­ente moldada. O que se pode dizer é que a Rússia entrou plenamente na modernidad­e com uma excelente apresentaç­ão da verdade e dos mitos, permitindo a Carlson algumas refutações. Putin viu-o como amigável, mas como uma carta selvagem, pelo que poucas cartas lhe foram dadas. ●

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Na conversa com Tucker Carlson, Vladimir Putin fez afirmações muito duvidosas, mas devem ser encaradas como as de um líder que defende os interesses russos
▲▶ Na conversa com Tucker Carlson, Vladimir Putin fez afirmações muito duvidosas, mas devem ser encaradas como as de um líder que defende os interesses russos
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