A Dona Justiça e os dois candidatos
A Justiça acumulou ao longo de 50 anos vários elementos de crise que têm vindo a degradar a sua imagem na opinião pública e a vulnerabilizar a sua posição no debate político. Morosidade, prescrições, arcaísmos organizativos diversos, incapacidade comunicativa, preços exorbitantes de custas, julgamentos anulados por formalismos processuais, tudo estrangulamentos que têm feito da justiça um território incompreensível para a população em geral. A mistura das velhas liturgias processuais, prazos não imperativos, decisões longuíssimas, com muita fundamentação doutrinária e jurisprudencial, com um legislador político demasiado caótico, incoerente e interessado, produziu uma mistura explosiva.
Veja-se, como exemplo da fraquíssima qualidade do legislador (para não dizer pior), a alteração da lei sobre os impedimentos dos juízes, acertada por duas deputadas do PS e PSD na anterior legislatura, que lançou o caos absoluto nos tribunais. A instrumentalização destes, para ir ao encontro dos interesses de meia dúzia de advogados que litigam na base dos impedimentos dos juízes e dos prazos, foi uma vergonha.
Todavia, nos últimos tempos, quando se fala de “crise da justiça” não se está a falar só daqueles elementos de crise. Nem dos problemas graves da justiça fiscal, administrativa ou comercial. Não, o problema está na meia dúzia de processos, se tanto, que envolvem os amigos dos amigos com poder e influência.
Pequenos nos exemplos de manipulação do processo legislativo. Basta atentar na reforma das leis penais em 2007. Depois do trabalho da comissão de reforma, alterações que não passaram nesta instância, como a do crime de desobediência para jornalistas que publiquem escutas sem o consentimento dos próprios visados, pasme-se, ou de alguns mecanismos de imunidade para políticos, foram metidas a martelo no processo legislativo.
Essaformadeatuação, de bastidores, negociada em função de interesses particulares, definindo normas à medida, foi objeto de um dos mais sólidos acordos de regime do pós-25 de Abril. Sobretudo a partir dos governos da AD e do Bloco Central, a justiça foi objeto de um consenso tecido dentro dos setores mais influentes e ligados aos interesses económicos de gente do PS e PSD, essencialmente defendidos por personagens como Almeida Santos, Ângelo Correia, Dias Loureiro, entre outros, que deixava claro qual era o limiar máximo de eficácia admitido. Era-lhe exigido que reprimisse a criminalidade de sangue, que vencesse o terrorismo da extrema-esquerda, nos anos 80, mas que ficasse sossegada no crime económico e político. Por isso os meios técnicos e humanos foram pingando muito devagar, os crimes não eram previstos na lei, só muito tarde surgiram os primeiros casos envolvendo políticos e, ainda assim, excluindo a prisão como paradigma sancionatório. Tudo demorou mais de 20 anos.
Na última década e meia algumas coisas mudaram. A prisão de Sócrates, a condenação de Armando Vara, Isaltino Morais, Duarte Lima e Oliveira Costa, as investigações contra Ricardo Salgado e a sua matilha, o desmantelamento do BPN, tudo isso criou um quadro de potencial mudança. Alguns acreditaram, mas a ilusão permanece: a tenaz continua.
Se não conseguem empastelar os processos na fase de investigação, têm a instrução, que se transformou num julgamento prévio. Se não funciona aqui, têm o julgamento, os recursos, impedimentos, aclarações. Se nenhuma destas armas funciona, têm ainda a praça mediática e os seus assalariados para gritarem contra os megaprocessos, o Ministério Público, a Polícia Judiciária ou a judicialização da política,
Não tenhamos ilusões. A Dona Justiça não esteve no debate entre os candidatos Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro porque é uma convidada incómoda. Porque ninguém sabe muito bem o que dizer, porque não querem dizer, naquele palco, o que lhes pedem certos poderes fáticos para que façam, basicamente, que imponham o respeitinho ao Ministério Público. Porque isso é para falar com recato e apresentar como facto consumado. O mínimo que podemos mesmo fazer é esperar que, tanto Nuno Santos como Montenegro, tenham um pingo de decência e não vão na conversa dos “senadores” que os rodeiam. ●