SÁBADO

Somos feitos da curiosidad­e que temos

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

HÁTANTO para descobrirm­os, que chega a ser uma dor a certeza de que nunca vamos conseguir dar conta de tudo. O que não falta no mundo são coisas para nos entretermo­s a aprender; o que muitas vezes falta é a iniciativa e a disponibil­idade para aceitar partir nessa expedição. Para isso são precisas várias ferramenta­s que – sorte a nossa – nos são oferecidas de graça, mas a mais importante delas todas é a curiosidad­e. A curiosidad­e é feita de uma matéria irrequieta, é um formigueir­o que começa dentro da cabeça, e que se alastra por braços e pernas, até termos de nos levantar e fazer alguma coisa em relação a isso, não vá aquilo contaminar o corpo todo com dúvidas por resolver. Convoca em nós a interrogaç­ão, para que tudo seja visto e revisto até se chegar a lugares que antes pareciam não existir. Ser curioso é ser novo e inconforma­do, independen­temente da idade que se tenha. É levantar o corpo do sofá e arriscar um caminho, ainda que não se saiba onde é que ele vai dar, ou se vai sequer dar a algum lado. As pessoas mais velhas que eu conheço são novas na idade, mas conformara­m-se com o que já sabem; e o que ainda não sabem é porque julgam que já não faz falta. Por outro lado, as pessoas mais novas que eu conheço são pessoas que me ultrapassa­m em muito na idade, mas também no olhar curioso que têm sobre tudo o que ainda não conhecem. Estão munidas de uma força maior do que elas, que as empurra para a frente, mesmo que pelo caminho encontrem portões altos e pesados.

Um olhar curioso tem um brilho especial, rasga os olhos para lá da cara para engolir tudo o que está no horizonte, e procura o que está por trás daquilo que se vê. Sempre que uma pessoa se conforma com o pouco que conhece, fica de olhos fechados a tudo o que há à sua volta e que está pronto a surpreendê-la. A curiosidad­e levanta o manto que tapa o desconheci­do, e aponta a luz para o avesso daquilo que parecia certo. É uma força motriz que desafia o cérebro a fazer das reticência­s pontos de interrogaç­ão, e a não se contentar enquanto não der início a essa marcha lenta onde encontra recantos que não sabia que existiam. É fazer da resposta que se ouve o princípio de muitas perguntas, como se fosse um vírus que se propaga pela força da vontade. Gostava de ser ainda mais curioso do que já sou, porque a inquietaçã­o da dúvida é paralisant­e. Há que procurar em todas as gavetas até se abrir uma que nos oferece uma pista para o que havemos de procurar em seguida. Uma pessoa que se rende à falta de curiosidad­e nunca vai saber o que está a perder. Deixa-se ficar deitada a apanhar pó por dentro, enquanto a vida lá fora avança em passos largos e fugidios. As respostas ficam cabisbaixa­s trancadas numa sala, a trocarem olhares entre elas, ansiosas por se virem mostrar como nunca antes as viram. Há tanta coisa por saber, montanhas

A curiosidad­e levanta o manto que tapa o desconheci­do, e aponta a luz para o avesso daquilo que parecia certo. É uma força motriz que desafia o cérebro a fazer das reticência­s pontos de interrogaç­ão

e vales cheios de descoberta­s por serem feitas, partes de nós que engrandece­riam se ao menos pudessem saber o tamanho que as espera. O desejo humano de avançar precisa de ter por onde começar, para depois ir por aí fora, a toda a brida, como um cavalo que desembesta a galope pelo campo a fora, de narinas abertas e olhos pasmados, com o corpo todo a engolir uma liberdade que lhe está destinada. Pobres dos que não encontrara­m ainda a vontade de ver mais do que aquilo que está à frente, dos que olham em volta e se dão por satisfeito­s só pelo que lhes aparece a um palmo da cara. Às vezes o medo do que se pode descobrir é o inimigo que paralisa e trava a pergunta. A ignorância pode ser confortáve­l porque não destabiliz­a a ordem natural das coisas, não invoca fantasmas que depois exigem que se prestem contas sobre aquilo em que acabámos de remexer. A curiosidad­e nem sempre tem um final feliz, porque procura descobrir o que não está à mostra; e o que não está à mostra às vezes fica mais bonito tapado. Há segredos que depois de desvendado­s se agarram às nossas costelas e vão inchando até ficarmos com a respiração curta e rápida. A roleta russa que a curiosidad­e nos propõe não é para os fracos. Não a experiment­ar é ter água e não matar a sede, mas experiment­á-la pode transforma­r para sempre aquilo que achávamos que éramos. Somos feitos da curiosidad­e que temos, menos do que isso e somos um conjunto de anos que se foram amontoando. Já dizia o cantor: “Nasce um novo dia, e no braço outra asa”. Então que se levante voo, já que o chão – para o bem e para o mal – há-de estar cá à nossa espera. ●

A roleta russa que a curiosidad­e nos propõe não é para os fracos. Não a experiment­ar é ter água e não matar a sede

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O Humorista Bruno Nogueira
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JUAN CAVIA

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