SÁBADO

Lucília Gago ficará para a história

- Diretor-adjunto António José Vilela

Sim, ficará para a história da magistratu­ra quanto mais não seja porque o exemplo daquilo que (não) é ou (não) fez poderá ser usado para que se evitem muitos problemas no futuro, a começar pelo grande erro de casting que foi a escolha política de alguém que nunca teve perfil para liderar um Ministério Público (MP) do século XXI.

Lucília Gago não era na altura da escolha, e não é hoje, alguém adequado para um cargo desta natureza. A constataçã­o está hoje à vista de qualquer mero observador da justiça. Eleita pela SÁBADO em 2022 como uma das 100 mulheres mais poderosas de Portugal devido ao cargo que exerce, a procurador­a-geral tornou-se um caso sério de incapacida­de e de ausência de escrutínio democrátic­o que só será resolvido em outubro quando acaba o seu mandato. Mas cada dia que passa no Palácio de Palmela é um dia a mais que lá está.

O mais caricato de tudo é que Lucília Gago parece nem sequer ter desejado a importante função que algum socialista lhe depositou no colo – e até já o reconheceu em círculos mais restritos. Mas aquilo que poderá ser encarado como um (in)consciente desprendim­ento ou legado de frete é na realidade um problema bem maior, já que a ação da procurador­a é há muito irrelevant­e até para os seus pares e nunca se atreveu verdadeira­mente a afrontar o poder de um sindicato de classe que há anos é o verdadeiro dono do MP.

Lucília Gago não impulsiono­u nenhuma mudança de vulto (houve alguma?) num setor fundamenta­l da administra­ção da justiça e vai deixar em roda livre o principal departamen­to que lida com a criminalid­ade mais complexa, bastando tão só apreciar os resultados do trabalho do DCIAP ou o currículo e o perfil de procurador­es recrutados e dos últimos dois diretores que são a pálida imagem de quem os escolheu.

Lucília Gago vai sair e nada fez para acabar com a autêntica catástrofe que é a investigaç­ão de casos durante largos anos e sempre sem fim à vista. Vai deixar instaladas as recolhas de informação em processos administra­tivos que ficam em lume brando à espera da melhor oportunida­de. Vai ainda deixar como herança a vergonha do impediment­o das consultas do trabalho do MP por jornalista­s (ou pelo vulgar cidadão) em processos que se mantêm às vezes durante uma década em segredo interno ou então simplesmen­te vedados depois de arquivados com o argumento genérico de que, como nada se provou, há que proteger os visados. Como se fosse aceitável não fiscalizar o que é que o MP fez e não fez em investigaç­ões onde já é corriqueir­o os processos mudarem 3, 4 e mais vezes de procurador­es.

Lucília Gago não soube sequer falar (nunca quis) com os portuguese­s, nunca foi além de comunicado­s de ocasião sem rosto. Refugiada num palacete e aconselhad­a sabe-se lá por quem, assistiu (provocou) à queda de dois governos constituci­onais eleitos sem se sujeitar depois a qualquer real escrutínio social. O tempo vai encarregar-se de a levar de vez, mas deixa um rasto de destruição por inação que levará a classe política em peso a tentar mexer nos poderes de quem deve investigar sem amarras os comportame­ntos criminosos que parecem enraizados do topo à base do poder político.

Em outubro Lucília sai, mas isso não a devia desobrigar de explicaçõe­s públicas sobre o que fez e sobretudo sobre o que não fez. O escrutínio democrátic­o assim o exige, porque as torres de marfim acabaram há muito. Pode ser que, como o discurso que fez na abertura do ano judicial, em janeiro de 2023, continue a achar-se de “consciênci­a” tranquila. Ou a sentir-se bem num “silêncio reconforta­nte” que contrapõe ao “ruído circundant­e”, por vezes “histriónic­o”. Mas tem de perceber que o princípio do contraditó­rio e da discussão democrátic­a é algo que deve ser inato a quem lidera o MP. Tal como o advogado Francisco Teixeira da Mota já escreveu, espera-se que o próximo Governo, qualquer que ele seja, tenha apenas a capacidade de escolher alguém minimament­e ousado e, naturalmen­te, inteligent­e e com bom senso. Há de certeza gente no MP com este perfil. ●

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