Lucília Gago ficará para a história
Sim, ficará para a história da magistratura quanto mais não seja porque o exemplo daquilo que (não) é ou (não) fez poderá ser usado para que se evitem muitos problemas no futuro, a começar pelo grande erro de casting que foi a escolha política de alguém que nunca teve perfil para liderar um Ministério Público (MP) do século XXI.
Lucília Gago não era na altura da escolha, e não é hoje, alguém adequado para um cargo desta natureza. A constatação está hoje à vista de qualquer mero observador da justiça. Eleita pela SÁBADO em 2022 como uma das 100 mulheres mais poderosas de Portugal devido ao cargo que exerce, a procuradora-geral tornou-se um caso sério de incapacidade e de ausência de escrutínio democrático que só será resolvido em outubro quando acaba o seu mandato. Mas cada dia que passa no Palácio de Palmela é um dia a mais que lá está.
O mais caricato de tudo é que Lucília Gago parece nem sequer ter desejado a importante função que algum socialista lhe depositou no colo – e até já o reconheceu em círculos mais restritos. Mas aquilo que poderá ser encarado como um (in)consciente desprendimento ou legado de frete é na realidade um problema bem maior, já que a ação da procuradora é há muito irrelevante até para os seus pares e nunca se atreveu verdadeiramente a afrontar o poder de um sindicato de classe que há anos é o verdadeiro dono do MP.
Lucília Gago não impulsionou nenhuma mudança de vulto (houve alguma?) num setor fundamental da administração da justiça e vai deixar em roda livre o principal departamento que lida com a criminalidade mais complexa, bastando tão só apreciar os resultados do trabalho do DCIAP ou o currículo e o perfil de procuradores recrutados e dos últimos dois diretores que são a pálida imagem de quem os escolheu.
Lucília Gago vai sair e nada fez para acabar com a autêntica catástrofe que é a investigação de casos durante largos anos e sempre sem fim à vista. Vai deixar instaladas as recolhas de informação em processos administrativos que ficam em lume brando à espera da melhor oportunidade. Vai ainda deixar como herança a vergonha do impedimento das consultas do trabalho do MP por jornalistas (ou pelo vulgar cidadão) em processos que se mantêm às vezes durante uma década em segredo interno ou então simplesmente vedados depois de arquivados com o argumento genérico de que, como nada se provou, há que proteger os visados. Como se fosse aceitável não fiscalizar o que é que o MP fez e não fez em investigações onde já é corriqueiro os processos mudarem 3, 4 e mais vezes de procuradores.
Lucília Gago não soube sequer falar (nunca quis) com os portugueses, nunca foi além de comunicados de ocasião sem rosto. Refugiada num palacete e aconselhada sabe-se lá por quem, assistiu (provocou) à queda de dois governos constitucionais eleitos sem se sujeitar depois a qualquer real escrutínio social. O tempo vai encarregar-se de a levar de vez, mas deixa um rasto de destruição por inação que levará a classe política em peso a tentar mexer nos poderes de quem deve investigar sem amarras os comportamentos criminosos que parecem enraizados do topo à base do poder político.
Em outubro Lucília sai, mas isso não a devia desobrigar de explicações públicas sobre o que fez e sobretudo sobre o que não fez. O escrutínio democrático assim o exige, porque as torres de marfim acabaram há muito. Pode ser que, como o discurso que fez na abertura do ano judicial, em janeiro de 2023, continue a achar-se de “consciência” tranquila. Ou a sentir-se bem num “silêncio reconfortante” que contrapõe ao “ruído circundante”, por vezes “histriónico”. Mas tem de perceber que o princípio do contraditório e da discussão democrática é algo que deve ser inato a quem lidera o MP. Tal como o advogado Francisco Teixeira da Mota já escreveu, espera-se que o próximo Governo, qualquer que ele seja, tenha apenas a capacidade de escolher alguém minimamente ousado e, naturalmente, inteligente e com bom senso. Há de certeza gente no MP com este perfil. ●