Lugar onde nos levam os cheiros
AS MEMÓRIAS que temos do que fomos são aquilo que somos agora. Para essas memórias serem acordadas não há uma lógica concreta. Às vezes são palavras que dizem e que nos levam para frases que já ouvimos em alturas que agora estão distantes; outras vezes são músicas que nos fazem ter a idade que tínhamos quando as ouvimos pela primeira vez, numa viagem tão repentina pelos anos que o corpo demora tempo a compreender porque é que continua tão grande, se de repente ficámos tão pequeninos. O paladar também nos pode ajudar a matar saudades de quem já cá não está; provamos uma coisa que nos traz de volta alguém para o nosso lado, que aparece naquele sabor, as papilas gustativas a gritarem de saudades pelo que pensavam que não ia voltar. O que desperta o passado de cada um são pequenos alçapões que nos apanham de surpresa. No meio desses alçapões, os cheiros das coisas convocam recordações tão antigas que quase podíamos jurar que já lá não estavam. Apanham-nos desprevenidos, e roubam-nos do presente sem aviso prévio. Há muitos cheiros que me levam para quando eu ainda não tinha idade para saber a convulsão que me iam provocar anos mais tarde. São pequenos frascos de vidro fino, onde são armazenadas essências que sabem onde me hão-de levar, como se fosse uma corrida ao encontro de um tempo que já só existe cá dentro. Os cheiros das coisas podem-nos levar para perto do que já foi, mas que nos faz companhia por mais aqueles segundos. O cheiro a figueira leva-me para quando eu tinha uns 12 anos, a brincar na terra da minha avó. A sombra daquela figueira era uma promessa de paz de um sol que queimava tudo onde tocava. A bicicleta deitada a recuperar, e aquela árvore tão grande, com uns braços que no verão estavam cheios de folhas e figos, mas que era uma amizade que só durava até chegar o outono; depois vinha a estação que mancha tudo de sépia, a figueira ia-se condoendo, e perdia as folhas que lhe davam graciosidade. Volta e meia ouvia-se uma delas cair, num gesto trágico de fim de vida. Elas demoravam a perceber que tinha acabado, já quase secas no chão, ainda a lembrar que há pouco tempo se espreguiçavam verdes. Pisava-as e deixavam no ar o odor a figo, num gesto final para não serem esquecidas. O cheiro a jasmim são verões felizes, com a família toda a jantar debaixo de uma pérgula, e deitada em cima dela ramos verdes sangram pequenas flores brancas que todos os anos nos vêm visitar e deixar que as cheiremos durante uns 15 dias. Fazem-se difíceis, e quando começamos a gostar e a querer mais, deixam-se cair encolhidas no chão, e abandonam a planta que fica sozinha e verde – uma mãe que se despede –, deitada na mesma pérgula, a sonhar com o verão que há-de voltar. O cheiro a maresia misturado com a resina dos pinheiros e a areia, o salgado e o doce, eu a andar de bicicleta
O cheiro a figueira leva-me para quando eu tinha uns 12 anos, a brincar na terra da minha avó. A sombra daquela figueira era uma promessa de paz de um sol que queimava tudo onde tocava
já quase a anoitecer, sem saber se me restavam forças para chegar a casa. O cheiro da lareira são tantos invernos a olhar para o fogo, o calor a aquecer-me a cara, uma vontade de querer chegar mais perto e não poder, as fagulhas como se fossem pequenos insectos brilhantes que fugiam em pequenas faíscas dramáticas.
Os cheiros das coisas são o que nos ajuda a manter a ligação com elas. A nossa casa tem um cheiro que nos deixa descansar depois da luta do dia inteiro. O dia em que uma casa ganha o cheiro de quem lá vive, é o dia em que merece o seu nome – até lá são só divisões juntas, com coisas que são nossas. A relva acabada de cortar, e o cheiro a terra molhada, um capítulo de ressurreição que nos faz acreditar outra vez nos começos. Os cheiros que se misturam dentro de uma mercearia de bairro fazem-me estar outra vez de mão dada com a minha mãe, a ir ao senhor Abílio depois da escola comprar o que faltava para o jantar. Eu a pedir sempre mais qualquer coisa que não fazia falta, mas a embalagem tinha cores tão fortes, que não a levar era uma dor pequena. O cheiro a cachimbo e eu com 10 anos a olhar para o meu vizinho Quim com uma cortina de fumo à frente dos olhos, como um capitão de um navio ancorado. Os cheiros, como palavras não ditas, contam histórias mudas de amores perdidos, de primaveras distantes e de invernos implacáveis. São histórias lá de muito longe, de estações que pareciam para sempre. Por muito que esses dias pareçam longe, estão a muito pouco de se repetirem agora tal como no tempo em que as vivemos. Os cheiros erguem-se como fantasmas para nos mostrarem que lá longe, onde achamos que está tudo quieto, há um arraial montado com muita gente à nossa espera. ●
Os cheiros, como palavras não ditas, contam histórias mudas de amores perdidos, de primaveras distantes e de invernos implacáveis