SÁBADO

DEPOIS DE VENCER O ÍDOLOS, AINDA TRABALHEI COMO ASSISTENTE COMERCIAL”

O novo disco Sentimenta­l, as inseguranç­as, a pressão das redes sociais e do sucesso, a paternidad­e (“mudou tudo”) e o “estigma que havia” com os concursos da TV: Piçarra abre o livro.

- Por Gonçalo Correia (textos) e Duarte Roriz (fotos)

ENTREVISTA DIOGO PIÇARRA

A música transformo­u-o, muito antes do sucesso. Quando a descobriu, “estava numa fase em que não conseguia olhar para o espelho, cheio de acne e inseguranç­as, achava que ninguém me compreendi­a”, recorda. Nos ouvidos tinha os Linkin Park, os Rise Against, os Limp Bizkit, bandas que lhe deram força: “Parecia que estavam a cantar para mim.” Pegou na guitarra, primeiro. Fez-se cantor, depois. Tentou o Ídolos em 2009, regressou ao programa para o vencer em 2012. Inesperada­mente, tornou-se uma estrela pop. Vieram os discos, canções como Tu e Eu, Dialeto, História e Só Existo Contigo e o regresso à televisão como mentor do The Voice.

Com um disco prestes a ser editado, que junta canções de amor e desamor e baladas a ritmos eletrónico­s como não fizera até aqui (sempre com a pop como moldura), Diogo Piçarra sentou-se com a SÁBADO para falar de quase tudo: o álbum Sentimenta­l, que chega a 1 de março, as redes sociais que o fazem por vezes sentir-se uma “marioneta”, o desafio que foi sair da televisão e de Faro e começar a carreira em Lisboa e a forma como lida com a volatilida­de destes tempos, em que uma estrela pop hoje pode deixar de o ser amanhã.

É fácil a alguém que tem uma vida familiar e amorosa estável escrever canções de desamor, como a Saída de Emergência ea Teu deste disco novo?

Nada fácil [risos]. É o maior desafio: inspirar-me quando a vida está estável, quando não corre assim tão mal amorosamen­te e profission­almente. Tento usar como combustíve­l sentimento­s menos bons, aquele desamor que não aconteceu, mas que se calhar tenho de ir buscar platonicam­ente para as letras. Tal como trazer novas melodias, letras, novos temas e novas perspetiva­s é desafiante quando já vou no quarto disco.

Logo na primeira música canta “passo a vida a tentar/ o que nunca vou conseguir”. Não é algo normalment­e dito por pessoas com um ego insuflado, que é algo que se associa um bocadinho à ideia de estrela pop.

Parece que quanto mais faço, mais duvido de mim, do caminho que estou a seguir. Ao adormecer, sou o pior cantor do mundo”

Ego insuflado tenho muito pouco. Fui sempre bastante terra a terra. Serei sempre falível, imperfeito e sinto-o cada vez mais. Parece que quanto mais faço, mais duvido de mim, do caminho que estou a seguir. “Será que é isto que as pessoas querem ouvir? Será que estou a repetir-me? Estou a inovar, será que as pessoas percebem?”

É a síndrome do impostor?

É, mas é mais à noite. Ao adormecer, sou o pior cantor e artista do mundo. Depois acordo, olho-me ao espelho e penso: também já fiz alguma coisa…

Nas suas letras, transparec­e uma vulnerabil­idade emocional. Isso tem a ver com a pessoa que era antes do sucesso?

E com a que ainda sou, apesar de já ter sido mais ingénuo e vulnerável. Sempre sofri com pouco em miúdo. A autoestima, o físico... a turbulênci­a toda da juventude e da adolescênc­ia. Tenho um irmão gémeo e se calhar era o incompreen­dido, o mais revoltado com a vida. Hoje não, mas ainda há inseguranç­as, se calhar mais ligadas à música. ▶

▶ O disco chama-se Sentimenta­l.

É um traço da sua personalid­ade?

Sim. Acho que todos os meus discos podiam chamar-se sentimenta­l [ri-se]. Não quero que as pessoas pensem que este é o disco mais sentimenta­l. A música e as canções são para as pessoas sentirem, mas têm de vir também de um lugar de sentimento. E tudo o que escrevi senti, nem que seja indiretame­nte.

As primeiras palavras que canta no disco são “acordei sentimenta­l”. A Penélope [filha, prestes a fazer 4 anos] deixa-o acordar sentimenta­l ou as noites e manhãs não permitem essas veleidades? Eu e a Mel [Mel Jordão Piçarra, com quem casou] devemos ser os pais mais sortudos. Temos uma filha que com 3 anos parece uma adolescent­e de 16, dorme até ao meio-dia. Se existe Deus, ouviu as nossas preces. “Tens uns pais que gostam de dormir, por favor dorme a noite toda.” Tenho uma veia de artista, deito-me tarde para tentar aproveitar a criativida­de e a inspiração, e aí a culpa é minha: elas estão a fazer tudo bem, o pai é que se deita tarde e depois tem de se levantar à mesma hora de toda a gente.

Foi pai em 2020. É inevitável que a carreira mude? Sobretudo numa profissão que é muito itinerante, que implica sair muito de casa e viajar.

Muda tudo, principalm­ente a tua perspetiva em relação à vida e às prioridade­s. Se calhar já não levo tão a sério o sucesso ou o fracasso porque tenho lá em casa alguém que é muito mais importante do que isso. Vou trabalhar sempre para o sucesso, mas no fim do dia aquela pessoa é que tem de estar bem. E muda o dia a dia: antes se calhar tinha 24 horas para compor uma canção e agora o dia está contado, há uma menina que vai sair da escola e o pai e a mãe têm de estar presentes quando ela sair; temos de jantar, temos de brincar. Só

Ser pai muda tudo. Sucesso, fracasso? Tenho lá em casa alguém que é muito mais importante do que isso”

Recordo-me de vencer o Ídolos e pensar: e agora? Não tinha exemplos anteriores de sucesso. Havia algum estigma com os programas de talentos

a partir do momento em que ela vai dormir é que sou novamente o Diogo compositor.

No disco canta: “Sinto que o mundo está cada vez mais fake/ ou será que sou eu que fiquei mais velho?” Já encontrou a resposta para a pergunta?

É as duas coisas [risos]. Estou mais velho, mas o mundo está mais fake.

Em que aspetos?

Hoje, com as redes sociais, estamos em todo o lado, mas não estamos em lado nenhum. Sinto que se estão a perder os afetos e a atenção. É tudo cada vez mais rápido. Há máquinas cada vez mais potentes – óculos, telemóveis, relógios –, mas estamos cada vez mais distantes. Também sou refém das redes sociais, mas sei quando desligar.

Passou por programas de talentos e em 2012 venceu o Ídolos. Antes, o caminho de saltar de um programa de televisão para uma carreira de sucesso não era

muito comum. A televisão tem vindo a transforma­r a indústria musical? Recordo-me de acabar o programa, vencer e pensar: e agora? Não tinha exemplos anteriores de sucesso, de carreiras de longo prazo, com discos e concertos. Alguns [vencedores anteriores] podem ter lançado singles mas nunca houve algo mais consistent­e. Pensei: o que tenho de fazer? Qual é o estilo, quais são as letras, o que faço? Mudo de nome? O que fiz? Empenhei-me. Tentei aprender mais e ser autossufic­iente, não depender de ninguém para produzir, compor e gravar. Investi nisso: escrever as minhas canções e aprender a produzir, a mexer nos programas, a tocar melhor piano, guitarra e bateria. Estava sozinho em casa com o meu irmão e era só trabalhar, tocar, gravar as minhas músicas, produzi-las. De repente tinha um disco feito só por mim, precisava só de ajuda na pós-produção.

Sente que a indústria passou a olhar mais para este tipo de programas depois de ter singrado?

Sinto que havia, talvez, algum estigma. Não diria desdém, mas era algo como: “Se estás a participar é porque vês ali uma porta fácil”. Fácil? Toda aquela produção, os nervos, os desafios que era preciso atravessar semanalmen­te, ter de enfrentar jurados... Sempre que alguém me diz que vai participar, gabo-lhe a coragem. Estás ali e podes levar com um não que fica gravado para sempre – se calhar, é mais confortáve­l pôr um vídeo na Internet e esperar que alguém oiça –, mas acho que houve uma evolução na aceitação dos programas de talentos. Nota-se muito no The Voice: não só os vencedores, os concorrent­es têm muito valor e podem criar uma carreira só com uma participaç­ão numa prova cega. O maior exemplo é a Bárbara Tinoco, com uma prova cega sem sucesso, com um

“não”, de repente decidiu cantar um original ali e começou a carreira que tem hoje.

Ganhou o Ídolos há 12 anos. A indústria musical mudou muito: redes sociais, Internet, a valorizaçã­o do single, a playlist...

Mudou muita coisa, a começar pelas redes sociais. Lembro-me de na altura ter o Facebook como forma de promoção, mas usava-o de forma pontual, Como figura pública, dou algum destaque à minha vida pessoal porque é a minha realidade e não quero escondê-la, não quero ser um artista místico, meio misterioso, a esconder a minha filha e a minha mulher. Estou o dia todo com a minha filhota, estamos a brincar, quero filmar e tirar uma foto, quero que as pessoas vejam a minha felicidade, a nossa paternidad­e a acontecer, a nossa filha a crescer. Com as redes sociais foi havendo uma separação do público. Quando apareceu o Instagram, o público mais jovem foi para o Instagram e o mais velho ficou no Facebook. De repente aparecem o Twitter, o TikTok. O público está tão dividido que para quem cria fica difícil atacar todas as frentes. Às vezes é frustrante. Tenho de ser jovem? Tenho de fazer...? Obrigo-me a estar presente, como artista pop e mais comercial acho que devo. Mas às vezes sinto-me uma marioneta a procurar as tendências para poder chamar a atenção, usando a música como banda sonora de fundo, para depois, ao fim do dia, a música ficar um bocadinho mais no ouvido das pessoas.

O acesso à música também nunca foi tão fácil. As pessoas hoje estão a ouvir uma coisa e amanhã podem estar a ouvir outra, as tendências mudam rapidament­e. Lida bem com isso?

Já lidei pior. Vou-me habituando. Acredito que vou ter sempre uma base forte de pessoas que gostam mesmo do meu trabalho e me seguem a 100%. Tento sempre acarinhar essa base. Nada mais é controláve­l. As pessoas podem gostar muito de uma música que eu tenha feito hoje mas se calhar não vão gostar do single seguinte. Não as posso julgar, saem milhares de músicas por dia e as pessoas têm acesso a essas músicas à borla. Hoje ouvem o Sentimenta­l, amanhã sai um disco de um artista de que gostam muito e que nem tem nada a ver comigo – de um Dillaz, um Slow J, um Ivandro, que têm estilos completame­nte diferentes – e gostam. É totalmente compreensí­vel.

Cresceu em Faro. Com que idade foi para Lisboa?

Pouco mais de 20 anos.

Como foram os primeiros tempos?

Foi depois do Ídolos. Depois de ter ido estudar música para Londres [era parte do prémio do programa] voltei para Faro e tinha de fazer algo para ganhar dinheiro. Comecei a trabalhar na Vodafone de Faro,

Não quero ser um artista místico, meio misterioso, a esconder a minha filha e a minha mulher”

graças à ajuda de uma amiga que trabalhava lá e a quem pedi ajuda. “Não tenho disco, não tenho nada, toco de vez em quando em bares mas preciso mesmo de ganhar mais dinheiro.” Passei a trabalhar como assistente comercial. De repente houve a oportunida­de de mudar para a Vodafone de Alfragide e foi juntar o útil ao agradável, porque queria estar perto da indústria musical e dos produtores. Estava com pressa e com receio, queria lançar algo rápido para as pessoas não se esquecerem de mim. Pedi ajuda a um casal que estava em Lisboa e que me deu casa durante uns meses. Depois arranjei um T0 no Cacém e a partir daí as coisas começaram a acontecer. Fui gravando músicas e juntei-me a um estúdio. Era só o puto dos Ídolos que tinha acabado de ganhar e que não tinha nada [preparado].

Hoje em dia um miúdo já não precisa de sair de Faro, pode conhecer esses produtores pela Internet, trabalhar com eles à distância, gravar em casa...

Há 12 anos não havia essa facilidade. Os produtores que conhecia e tinha como referência eram mais velhos e inacessíve­is, e não sabiam o que fazer comigo. “O que é que tu fazes? És artista, és cantor pop, és guitarrist­a?” Ninguém sabia o que fazer comigo. Hoje, se calhar um miúdo do The Voice sai e em três meses já tem o single feito, o vídeo, as sessões fotográfic­as, as redes sociais prontas. Eu demorei três anos. Pensava: pronto, já passou um ano, já passaram dois, já fui, já se esqueceram de mim. ●

Às vezes sinto-me uma marioneta nas redes sociais, a procurar as tendências para poder chamar a atenção

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SENTIMENTA­L • Universal Music Portugal • Ed. 1 de março
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O cantor, músico e escritor de canções fotografad­o pela SÁBADO a assinar um cartaz de promoção dos seus próximos concertos
OS AUTÓGRAFOS O cantor, músico e escritor de canções fotografad­o pela SÁBADO a assinar um cartaz de promoção dos seus próximos concertos
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