SÁBADO

AS DESCULPAS ESFARRAPAD­AS

- ÂNGELA MARQUES

Dentro das minhas possibilid­ades, eu estava atrasada. Não tendo culpa nem noção disso, o motorista a quem eu tinha pedido uma boleia acelerava pelas ruas de Lisboa como se Lisboa estivesse prestes a ficar fora de moda. No vermelho de um semáforo, a que chegáramos com esperança de ainda o apanhar laranja, olhei para o lado e vi dois rapazes bem mais acelerados que nós.

Com um canudinho improvisad­o, eles aspiravam todo o pó do mundo (ou todo o que tinham conseguido comprar naquele dia), com uma vontade canina mas não envergonha­da, dando-me a impressão, até pelos colarinhos brancos, de que havia praticamen­te zero hipóteses de nos voltarmos a cruzar naquela noite – o voo deles seria mais alto, da mesma forma que o buraco seria mais fundo.

No meu canto, o máximo que eu fazia era respirar fundo – aquele jantar tinha sido marcado para a hora da ceia. Para me fortalecer, a frase “não acredito que estou a sair de casa nesta chuva a esta hora” brotou no ecrã do meu telemóvel, enviada por um amigo angustiado como eu, embora mais novo – o que, em perspetiva, quase me fez sentir jovem.

E foi neste embalo que segui, pelas ruas cheias de carros cheios de pressa, a elencar

FOI ASSIM QUE SEGUI A ELENCAR AS RAZÕES PELAS QUAIS UMA PESSOA PODE E/OU DEVE SAIR DE CASA NAS NOITES DE CHUVA E FRIFRIO

as razões pelas quais uma pessoa pode e/ou deve sair de casa nas noites frias e chuvosas. Nas muitas vezes em que o fiz, concluí, a chuva e o frio não eram sequer contemplad­os como contras. Nunca, em toda a temporada juvenil, eu levei a meteorolog­ia em conta na hora de sair de casa.

Não havia frio (a sensação que tenho é a de que mal possuía casacos) nem havia chuva (se quisesse comprar um chapéu, nem saberia onde), havia um plano e esse plano era chegar exausta e feliz a casa. Hoje, a chuva e o frio também não me incomodam, mas por outra razão – é que são desculpas perfeitas para ficar em casa.

A felicidade suprema, aliás, descobri-a esta semana, quando na praceta onde vivo abriu uma farmácia. Não conto precisar muito dela (não me sinto velha, só cansada) – mas que coisa boa é poder saber a hora e a temperatur­a pela janela e, assim, decidir ficar em casa por “razões de força maior”. ●

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