SÁBADO

O programa do vice-procurador-geral

- O Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

O vice-procurador-geral da República, Carlos Adérito Teixeira, aproveitou o discurso de encerramen­to do congresso do Sindicato dos Magistrado­s do Ministério Público, realizado durante o fim de semana nos Açores, para apresentar um surpreende­nte pacote de ideias para a justiça.

No mesmo congresso em que a atual procurador­a-geral, Lucília Gago, assumiu que irá para a jubilação após o fim do atual mandato, em outubro, como se previa, o seu “vice” avançou um conjunto de reflexões que mereceriam uma ampla discussão, pedagógica e cívica, em tempos eleitorais. E que não podem deixar de ser vistas como uma espécie de programa do próprio Carlos Adérito Teixeira para o cargo, num tempo em que vai ser preparada a sucessão de Lucília Gago.

Com exceção da criação de taxas moderadora­s para travar a litigância excessiva, que não é, em si, uma proposta disparatad­a, mas que implicaria, para lá da impopulari­dade política, uma alteração constituci­onal porque, manifestam­ente, colide com o princípio da igualdade e abre a porta ao princípio da oportunida­de da investigaç­ão criminal, todas as outras promovem uma discussão necessária. Concorde-se ou não com elas.

Em síntese, Carlos Adérito Teixeira defende que não se passe a vida a alterar a legislação, defende a consagraçã­o do princípio da oportunida­de e da consequent­e alocação de meios em função das prioridade­s de investigaç­ão, o fim da fase de instrução, que está transforma­da, nos grandes casos, num julgamento antecipado, bem como o combate às manobras dilatórias, reduzindo os recursos e o efeito suspensivo de muitos deles.

O vice-procurador defende ainda a necessidad­e de rever a distribuiç­ão eletrónica de processos e a arbitragem, e de admitir na lei, nos casos de investigaç­ão da criminalid­ade económica e financeira grave, a utilização de software espionagem, nomeadamen­te nas buscas online ou nas ações encobertas em ambiente digital.

Por fim, entende ser necessário mexer no segredo de justiça, defendendo que este crime passe a admitir escutas telefónica­s, excecionan­do os jornalista­s, incluindo na apresentaç­ão de prova deste tipo contra eles, consideran­do que estão abrangidos pelo sigilo profission­al. Finalmente, Carlos Adérito Teixeira defendeu ainda que a comunicaçã­o institucio­nal do Ministério Público e individual, dos procurador­es, tem de melhorar. Neste contexto, admitiu mitigar o dever de reserva.

Como se vê, trata-se de um vasto leque de ideias, muito pensadas para defender a posição institucio­nal, formal e material do Ministério Público no sistema de justiça, é certo, como se constata na questão do segredo de justiça. Aqui, no essencial, Carlos Adérito Teixeira quer agilizar a prova da demonstraç­ão de que não é o Ministério Público o responsáve­l pelas fugas de informação, na maioria dos casos. Assume mesmo que, já hoje, o MP conseguiri­a demonstrar isso se fosse possível a utilização, dentro da lei, da informação de que dispõe. Esquece, no entanto, que uma alteração deste tipo, com recurso a escutas telefónica­s, mesmo subtraindo os jornalista­s da sua alçada, atacaria um dos núcleos essenciais do jornalismo, as suas fontes e respetiva proteção, algo que tem uma forte blindagem legal e constituci­onal. Algo que, ainda há bem pouco tempo, o Tribunal Constituci­onal alemão, por exemplo, exortou o governo de Merkel a densificar, devido a apreensões de telemóveis e buscas numa redação que considerou ilegais. Isto, diga-se, num caso de terrorismo.

De qualquer modo, Carlos Adérito Teixeira fez prova de uma coisa relativame­nte rara no mundo da justiça, sobretudo em tempos de “alguma irascibili­dade mediática”, como disse. Apresentou as suas ideias no palco certo, sem temores ou prudências táticas de autopreser­vação. Deu um contributo importante e muito válido para que se discuta alguma coisa, dentro das balizas adequadas, sobre eventuais reformas na área da justiça penal. Vai contra a vacuidade do tempo e a tudologia discursiva político-mediática. ●

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