O programa do vice-procurador-geral
O vice-procurador-geral da República, Carlos Adérito Teixeira, aproveitou o discurso de encerramento do congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, realizado durante o fim de semana nos Açores, para apresentar um surpreendente pacote de ideias para a justiça.
No mesmo congresso em que a atual procuradora-geral, Lucília Gago, assumiu que irá para a jubilação após o fim do atual mandato, em outubro, como se previa, o seu “vice” avançou um conjunto de reflexões que mereceriam uma ampla discussão, pedagógica e cívica, em tempos eleitorais. E que não podem deixar de ser vistas como uma espécie de programa do próprio Carlos Adérito Teixeira para o cargo, num tempo em que vai ser preparada a sucessão de Lucília Gago.
Com exceção da criação de taxas moderadoras para travar a litigância excessiva, que não é, em si, uma proposta disparatada, mas que implicaria, para lá da impopularidade política, uma alteração constitucional porque, manifestamente, colide com o princípio da igualdade e abre a porta ao princípio da oportunidade da investigação criminal, todas as outras promovem uma discussão necessária. Concorde-se ou não com elas.
Em síntese, Carlos Adérito Teixeira defende que não se passe a vida a alterar a legislação, defende a consagração do princípio da oportunidade e da consequente alocação de meios em função das prioridades de investigação, o fim da fase de instrução, que está transformada, nos grandes casos, num julgamento antecipado, bem como o combate às manobras dilatórias, reduzindo os recursos e o efeito suspensivo de muitos deles.
O vice-procurador defende ainda a necessidade de rever a distribuição eletrónica de processos e a arbitragem, e de admitir na lei, nos casos de investigação da criminalidade económica e financeira grave, a utilização de software espionagem, nomeadamente nas buscas online ou nas ações encobertas em ambiente digital.
Por fim, entende ser necessário mexer no segredo de justiça, defendendo que este crime passe a admitir escutas telefónicas, excecionando os jornalistas, incluindo na apresentação de prova deste tipo contra eles, considerando que estão abrangidos pelo sigilo profissional. Finalmente, Carlos Adérito Teixeira defendeu ainda que a comunicação institucional do Ministério Público e individual, dos procuradores, tem de melhorar. Neste contexto, admitiu mitigar o dever de reserva.
Como se vê, trata-se de um vasto leque de ideias, muito pensadas para defender a posição institucional, formal e material do Ministério Público no sistema de justiça, é certo, como se constata na questão do segredo de justiça. Aqui, no essencial, Carlos Adérito Teixeira quer agilizar a prova da demonstração de que não é o Ministério Público o responsável pelas fugas de informação, na maioria dos casos. Assume mesmo que, já hoje, o MP conseguiria demonstrar isso se fosse possível a utilização, dentro da lei, da informação de que dispõe. Esquece, no entanto, que uma alteração deste tipo, com recurso a escutas telefónicas, mesmo subtraindo os jornalistas da sua alçada, atacaria um dos núcleos essenciais do jornalismo, as suas fontes e respetiva proteção, algo que tem uma forte blindagem legal e constitucional. Algo que, ainda há bem pouco tempo, o Tribunal Constitucional alemão, por exemplo, exortou o governo de Merkel a densificar, devido a apreensões de telemóveis e buscas numa redação que considerou ilegais. Isto, diga-se, num caso de terrorismo.
De qualquer modo, Carlos Adérito Teixeira fez prova de uma coisa relativamente rara no mundo da justiça, sobretudo em tempos de “alguma irascibilidade mediática”, como disse. Apresentou as suas ideias no palco certo, sem temores ou prudências táticas de autopreservação. Deu um contributo importante e muito válido para que se discuta alguma coisa, dentro das balizas adequadas, sobre eventuais reformas na área da justiça penal. Vai contra a vacuidade do tempo e a tudologia discursiva político-mediática. ●