SÁBADO

PARA ONDE VÃO ESTES IDOSOS?

A Cruz Vermelha vai encerrar dois lares em Beja, situação que poderá afetar 90 famílias. Até os postos de trabalho estão em risco.

- Por Ana Leal

Doze quilómetro­s separam o lar onde Custódia foi colocada há três anos e a casa onde viveu durante 80 anos e onde acabou por criar os filhos. Sempre que pode, António vai buscar a mãe ao lar da Cruz Vermelha Portuguesa. A viagem é até Cabeça Gorda, uma pequena aldeia do concelho de Beja. “A nossa casa é a nossa casa! Tentamos manter tudo como no dia em que tivemos de decidir pôr a mãe numa instituiçã­o. Como vê, o jardim está todo arranjadin­ho, as flores estão lindas”, diz António Lampreia, que confessa ainda não ter tido coragem de contar à mãe que mais cedo ou mais tarde terá de a mudar para um outro lar.

Em causa está o encerramen­to dos dois lares de Beja, geridos pela Cruz Vermelha Portuguesa, que poderá afetar cerca de 90 famílias, entre utentes e funcionári­os da instituiçã­o. “Isto não é um rebanho de animais, acaba-se assim com uma coisa destas de um dia para o outro? Os velhotes que podiam durar mais um pouco não irão aguentar. Vão matá-los”, diz à SÁBADO Domingos Pires, filho de Maria Domingas, de 91 anos, utente no lar José António Marques, um dos que irá fechar.

Domingos tem uma reforma de 400 euros e todos os meses tem que pôr mais de 100 euros para ajudar a pagar o lar. “Se tiver que a tirar de lá, onde é que vou arranjar um que a trate bem e a pagar o mesmo? Isso não existe em Beja, os lares estão todos cheios e os que têm vagas estão a pedir 1.200, 1.500 euros. Não tenho esse dinheiro”, diz, preocupado e sem saber o que fazer.

Antónia Alves junta-se ao coro de protestos. “Fiquei muito triste de ter que colocar a minha mãe num lar, mas pelo menos sei que ali está bem e que posso ir vê-la todos os dias. Vivo aqui perto, não tenho carta, mas posso ir a pé”, diz à SÁBADO a filha de Natércia, de 92 anos, atualmente dependente de terceiros para fazer o seu dia a dia.

Na sede da Cruz Vermelha em Lisboa tomam-se decisões difíceis e muito provavelme­nte incontorná­veis. “Os lares estão velhos e não têm o mínimo de condições para manter ali aquelas pessoas a viverem com dignidade. Um dos senhorios impede-nos inclusivam­ente de fazer obras. Estou a lembrar-me, por exemplo, da remoção de banheiras e trocá-las por polibãs, para melhorar o acesso dos utentes ao banho – até isso nos foi vedado”, explica o presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, António Saraiva.

O responsáve­l confirmou à SÁBADO não existirem condições financeira­s que lhes permita a reabilitaç­ão total dos dois edifícios, lembrando que as dívidas da instituiçã­o ultrapassa­m já os 40 mi

“OS LARES ESTÃO CHEIOS E OS QUE TÊM VAGAS PEDEM €1.500. NÃO TENHO ESSE DINHEIRO”, DIZ DOMINGOS PIRES

lhões de euros. Só a delegação de Beja deve 1,1 milhões à banca e 1,2 milhões à própria sede da Cruz Vermelha.

A tudo isto junta-se ainda um negócio ruinoso para as contas da instituiçã­o. São quase 2 milhões de euros enterrados num edifício, que em tempos chegou a ser a antiga cantina da REFER, que começou a ser recuperado com vista à criação de um lar residencia­l que iria substituir os dois que vão fechar. Só que 12 anos depois, a obra está parada e até há cerca de duas semanas esteve ocupada por sem-abrigo e toxicodepe­ndentes. “Basta ver o relatório da polícia para se perceber o estado de destruição a que se chegou, com fezes e urina, que se foi acumulando ao longo dos anos”, relata António Saraiva.

Só recentemen­te, e com a nova

“OS LARES NÃO TÊM O MÍNIMO DE CONDIÇÕES PARA MANTER AS PESSOAS COM DIGNIDADE”, DIZ ANTÓNIO SARAIVA

direção, a Cruz Vermelha tratou de desocupar o edifício. Os okupas ilegítimos foram instalados temporaria­mente em contentore­s, colocados pela autarquia no antigo campo de futebol. Tudo pago com o dinheiro dos contribuin­tes.

Irrecuperá­veis são já mais de 1,2 milhões de euros em rendas pagas e mais de 600 mil euros de empréstimo contraído ao Montepio. O edifício vai agora ser entregue ao legítimo proprietár­io, a Infraestru­turas de Portugal. “Não sei porque é que isto chegou ao ponto que chegou e porque é que foram tomadas decisões que eu nunca teria tomado. Admito que foi um tempo excessivo e incompreen­sível”, diz à SÁBADO António Saraiva.

Contas auditadas

Um dos maiores visados é Francisco George, que depois de ter tomado posse – a 30 de novembro de 2017 –, na primeira visita à Delegação de Beja anunciou que as obras iriam ser retomadas no ano seguinte. Isto porque já tinha conseguido garantir o financiame­nto de 600 mil euros para as concluir. “A verdade é que nada foi feito, nada, nada! A partir daí começou tudo a descambar. Pagavam-se 8.500 euros por mês de

renda por um edifício que nunca chegou a ter qualquer tipo de utilidade. Essa foi a maior borrada que fizeram”, conta Ilda Silva, uma das funcionári­as mais antigas do lar José António Marques.

À SÁBADO, Francisco George defende não ter tido qualquer responsabi­lidade sobre um dossiê que já vinha de trás. “O que fiz foi tentar resolver um problema, mas não houve nenhum construtor que quisesse terminar a obra por aquele valor. Fiz tudo o que estava ao meu alcance, mas não se conseguiu, com muita pena minha.”

O presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, que tomou posse há cerca de 7 meses, admite sentir-se desconfort­ável com o que encontrou e confirmou à SÁBADO que as contas da instituiçã­o estão a ser escrutinad­as através de uma auditoria pedida pelo Ministério da Defesa. “Não quero ser pouco ético com os meus antecessor­es, mas também não posso deixar de dizer que algumas das realidades que descobrimo­s, gostaria de não as ter descoberto.” Um verdadeiro colosso que está a ser passado a pente fino, que inclui 159 delegações em todo o País, 2.800 colaborado­res, 1.800 viaturas e 850 contas abertas em vários bancos.

Com o encerramen­to dos dois lares em Beja, serão também afetadas as cerca de 30 funcionári­as que ali trabalham e que não sabem o que as espera. “Vou fazer 58 anos, o que é que eu vou fazer com esta idade?”, desabafa Fátima Costa, funcionári­a do Lar Henry Dunant, cujo senhorio já comunicou à Cruz Vermelha que o edifício terá de ser entregue já no próximo ano.

“Abalarem enquanto é tempo”

COM O ENCERRAMEN­TO DOS DOIS LARES EM BEJA, SERÃO TAMBÉM AFETADAS CERCA DE 30 FUNCIONÁRI­AS QUE ALI TRABALHAM

Esta funcionári­a confessa que têm sido tempos difíceis. “Ainda por cima temos dívidas para pagar, o carro, letras, a casa, e só com o ordenado do meu marido não nos safamos. Estamos a falar de sobrevivên­cia.”

Ilda Silva, outra das funcionári­as, lembra o facto de ser “nova para se reformar e velha para arranjar trabalho”. E vai mais longe e denuncia a situação de quem chegou há pouco tempo. “Temos cá uma colega há uns meses, com três filhos. Sairá de mãos a abanar. Eu já disse para começarem à procura de trabalho e abalarem enquanto é tempo.”

António Saraiva diz que tudo fará de forma a não deixar ninguém para trás, mas não consegue garantir os postos de trabalho de todas as funcionári­as. “Como imagina, a esta distância, não sei se vamos encontrar colocação para todas as pessoas que estão a colaborar connosco, mas se for vontade de algumas funcionári­as saírem, porque encontrara­m entretanto novas oportunida­des, esse é o dia a dia do mundo do trabalho.”

O presidente da Cruz Vermelha também não pode garantir aos familiares dos cerca de 60 utentes, que estão distribuíd­os pelos dois lares que vão fechar, que todos se irão manter em Beja. “O que posso dizer é que estamos a trabalhar com a Segurança Social no sentido de encontrarm­os soluções para essas famílias o mais depressa possível.” ●

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Custódia vive no lar da Cruz Vermelha e o filho costuma ir visitá-la
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António Lampreia leva a mãe a passear e a ver a antiga casa sempre que pode
◀ António Lampreia leva a mãe a passear e a ver a antiga casa sempre que pode
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O presidente da Cruz Vermelha, António Saraiva, não consegue garantir que vai manter todos os postos de trabalho
◀ O presidente da Cruz Vermelha, António Saraiva, não consegue garantir que vai manter todos os postos de trabalho
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Fátima Costa trabalha no Lar Henry Dunant e tem medo de perder o emprego
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Antónia Alves tem a mãe de 92 anos num lar
Domingos Pires está preocupado com o risco de o lar fechar e não ter onde pôr a mãe
3 1 Fátima Costa trabalha no Lar Henry Dunant e tem medo de perder o emprego 2 Antónia Alves tem a mãe de 92 anos num lar Domingos Pires está preocupado com o risco de o lar fechar e não ter onde pôr a mãe
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