SÁBADO

A SOLUÇÃO PARA COMER SEM CULPA

Várias empresas desenvolve­ram formas de eliminar o açúcar depois da ingestão, seja através de enzimas ou de combinaçõe­s de fibras que atuam como esponjas.

- Por Lucília Galha

Imagine que podia comer um destes donuts (ou vários) todos os dias, sem se preocupar com a quantidade de açúcar que está a ingerir. E que para isso bastaria tomar, ao mesmo tempo, ou um pouco antes, uma mistura solúvel à base de fibras vegetais. Essa saqueta atuaria como uma esponja e neutraliza­ria o açúcar dos bolos, antes de ser absorvido pelo estômago. Parece demasiado bom para ser verdade – e é mesmo (já lá iremos) –, mas é essa a lógica por trás de uma nova tecnologia de eliminação do açúcar agora a chegar ao mercado.

Em novembro de 2023, uma startup sediada em São Francisco, chamada Biolumen, lançou um suplemento chamado Monch Monch, que garante que um grama deste produto consegue absorver seis de açúcar – sendo cada saqueta composta por quatro gramas. Segundo a empresa, o produto é eficaz na absorção de três tipos de açúcares, nomeadamen­te, a glicose, a sacarose e a frutose. Menos apelativo é o preço: são cerca de 138 euros por mês, cumprindo a dose recomendad­a de duas saquetas por dia. A

A IDEIA É QUE A INDÚSTRIA ALIMENTAR INCORPORE ESTA COMBINAÇÃO DE FIBRAS NOS PRODUTOS

ideia da empresa é que num futuro próximo a indústria alimentar possa incorporar o conteúdo da saqueta nos seus produtos – como um ingredient­e.

O produto em causa consiste na combinação de três tipos de fibras combinadas: a celulose, a carragenin­a e a goma de konjac. Parte do princípio de que o consumo de fibras solúveis na refeição diminui os níveis de açúcar no sangue, porque elas atuam justamente como esponja, mas isto não é novo. “Por exemplo, a goma de konjac já é utilizada há imenso tempo, com a finalidade de um suplemento para a perda de peso e para a diminuição do apetite, ainda com resultados muito ténues”, diz Gabriela Ribeiro, professora de Nutrição e Metabolism­o da Nova Medical School.

A especialis­ta corrobora as vantagens do consumo de fibra para a saúde – e até para a prevenção de algumas doenças. Contudo, considera que existe aqui uma estratégia de marketing “um bocadinho rebuscada” e que os benefícios da substância não podem ser usados como um licença para comer mal. Por várias razões. “Em primeiro lu

gar, muitos alimentos ricos em açúcar também são ricos em sal e em gordura, componente­s que não ajudam muito a gerir o nosso peso e a nossa saúde”, alerta. Outra justificaç­ão tem a ver com os mecanismos fisiológic­os que sinalizam este tipo de alimentos como apetecívei­s e recompensa­dores. “A sacarose estimula recetores na língua que rapidament­e enviam sinais de recompensa ao cérebro, mesmo antes de estes açúcares chegarem ao estômago. São eles que fazem com que se queira comer mais”, explica a também nutricioni­sta do Hospital CUF Descoberta­s.

Transforma­r o açúcar em fibra

Resumindo, o problema não se resolve com uma saqueta de fibra. “Isto quando muito é um penso rápido”, compara. Contudo, este não é o único produto a ser desenvolvi­do com a lógica de eliminar o açúcar depois da sua ingestão. Há quem esteja a seguir uma estratégia diferente: converter o açúcar em fibra no intestino, através de enzimas. Como os investigad­ores do Wyss Institute for Biological­ly Inspired Engineerin­g, da Universida­de de Harvard, que, em parceria

O PROBLEMA É QUE OS ALIMENTOS RICOS EM AÇÚCAR TAMBÉM SÃO RICOS EM GORDURA E EM SAL, QUE FAZEM MAL

com a marca Kraft Heinz, desenvolve­ram um método para levar até ao intestino uma enzima encontrada naturalmen­te nas plantas. “Esta enzima tem capacidade de chegar ao estômago intacta porque parece que é encapsulad­a e só ao chegar ao intestino se expande e atua nos açúcares dos alimentos”, explica Gabriela Ribeiro.

Também no Reino Unido, uma startup chamada Zya, testou uma substância (que é também uma enzima) que converte a sacarose numa fibra solúvel chamada inulina. A ideia da empresa é adicionar diretament­e a enzima aos alimentos, como cereais e outros processado­s. Já foram feitos testes preliminar­es em porcos, com bons resultados – sugerem que cerca de 30% dos açúcares são convertido­s em fibras –, e estão planeados ensaios em humanos.

Gabriela Ribeiro considera que na teoria estas novas tecnologia­s podem ser promissora­s. “Se eu conseguir transforma­r açúcares simples num componente que é uma fibra e que tem benefícios, claro que isso é uma ideia muito interessan­te. Agora, a sua aplicabili­dade na prática está, neste momento, um pouco distante da realidade”, salvaguard­a. Apesar de altamente polémicos para a comunidade médica, pela premissa de serem uma carta branca para cometer excessos, estes novos produtos não representa­m grandes perigos. “Não há muitos problemas de segurança porque algumas destas fibras estão regulament­adas para a ingestão como suplemento, como é o caso do konjac”, diz a especialis­ta.

Os únicos aspetos a ter em atenção são o consumo de água – “porque algumas delas atuam como espessante­s” – e os alegados benefícios. Na verdade, ainda não há evidência de que resultem. “O ensaio clínico que está a ser feito com esta mistura de fibras [referida no início do texto, o Monch Monch] não está sequer publicado”, chama a atenção Gabriela Ribeiro. E mesmo que se comprovass­e o seu potencial, não resolveria “nem um décimo do problema”, remata. ●

TRANSFORMA­R AÇÚCARES EM FIBRA É INTERESSAN­TE MAS ESTÁ LONGE DA REALIDADE, DIZ GABRIELA RIBEIRO

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Empresa britânica quer que em 2026 este tipo de alimentos, como cereais e bolos, já integrem a enzima
▶ Empresa britânica quer que em 2026 este tipo de alimentos, como cereais e bolos, já integrem a enzima
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