SÁBADO

As velocidade­s do tempo

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

UMA COISA que aflige uns e alivia outros, é que apesar de o tempo ser o mesmo para todos, avança a velocidade­s diferentes consoante o que esperamos dele. É um bichinho-de-conta que quando tentamos tocar-lhe fecha-se na escuridão do seu corpo, para não ter de dar justificaç­ões a perguntas difíceis. Um dos grandes mistérios do universo é a medida do tempo não ser fiel ao tempo em si, como se houvesse dois pesos e duas medidas para uma coisa que a lógica nos assegura que não. O tempo é do contra, e passa lento para quem quer que ele passe rápido, numa afronta à nossa voracidade. Cada minuto multiplica-se por muitos mais, até parecer que o ponteiro está a fazer um braço-de-ferro com a rotação da Terra. Quantos meses é que já duraram alguns anos? Houve dias na minha vida que foram meses inteiros de Inverno. Os dias duros são longos e secos, fazem-nos passar por cada segundo como se fosse uma promessa que cumprimos de joelhos, até conseguirm­os dar início ao minuto seguinte. São uma longa travessia numa paisagem sem céu, só um caminho de terra com um raio de luz ao fundo, que vai ficando cada vez mais distante à medida que nos tentamos aproximar dele.

Para combater a elasticida­de desses dias longos, existem momentos que queremos que durem para sempre, que se pare a ordem lógica do tempo e se pouse só o queixo nas mãos a assistir à primeira vez que um relógio se recusou a dar as horas; dias felizes que são injustiças poéticas serem tão curtos, que são feitos de tudo o que é preciso na vida, até que a noite aparece como uma visita indesejada para fechar as portadas e cravar uma estaca de ponto final na alegria.

O problema irremediáv­el é as horas serem iguais para todos, porque há quem não saiba o que fazer com elas, e há quem precise delas como de pão para a boca. Devia haver um centro de trocas horárias, onde quem tinha tempo a mais e não sabia o que fazer com ele, oferecia-o a quem o tem a menos e dava tudo para o conseguir multiplica­r. Apertava-se a mão para selar o acordo, e cada um acertava o relógio para a nova hora que tinha resultado desse negócio; e aplicavam-se multas rígidas para quem ousasse dizer a frase “preciso de fazer tempo”. A juventude tem a pressa toda concentrad­a dentro dela, exige que tudo passe rápido para que possa ter já aquilo a que tem direito. É só futuro à espera de acontecer, e um olhar altivo para quem demora a crescer. Talvez seja essa pressa que depois é descontada no futuro, quando o adolescent­e que cresceu até velho se recorda de como houve uma altura na sua vida em que o tempo parecia ser matéria descartáve­l, que durava mais do que achava necessário. Aí arrepende-se dos anos que desperdiço­u, mas é uma revelação perversa que só surge quando já não há volta a dar.

Há no entanto coisas que nos vão servindo de medida, onde conseguimo­s ver as marcas do tempo a passar, coisas que nos lembram que a passagem dos anos também é uma coisa concreta e palpável.

Devia haver um centro de trocas horárias, onde quem tinha tempo a mais e não sabia o que fazer com ele, oferecia-o a quem o tem a menos e dava tudo para o conseguir multiplica­r

As fotografia­s antigas são testemunho­s cruéis do que já não vamos ser – a pele, o corpo, o olhar, as pessoas que estavam a sorrir e que agora já não encontram o que as fez felizes. Olhamos para elas e fazemos contas de cabeça: “Esta foi tirada há 15 anos”, e depois respiramos fundo, e, com o peso dos anos que se somaram, acrescenta­mos: “Como o tempo passa…”

Através dos nossos filhos vemos materializ­ada a ferocidade da passagem dos anos. Fechamos os olhos, e quando voltamos a abrir já estão um palmo maiores, e damos por nós a fazer contas e a pensar que aquele palmo a mais, é um ano nosso. Eles crescem, e nós crescemos com eles – eles cheios de fome de amanhã, e nós secretamen­te a desejarmos que esse amanhã demore um bocadinho mais, que eles fiquem pequeninos e enroscados em nós até deixarmos de sentir os braços. É uma injustiça os anos dos filhos durarem todos o mesmo tempo. Os mais fascinante­s demoram menos do que deviam, ao passo que os mais tempestuos­os demoram o dobro do que seria desejável. Proponho que cada ano dos melhores dure 730 dias, para nos dar tempo de ficarmos só a olhar para eles, como se fossem uma pintura que resiste inalterada às garras do tempo.

Os relógios conspiram entre eles para juntos decidirem como vai ser o amanhã de cada um de nós. Não sabemos a que velocidade eles vão rodar os ponteiros – nem as razões que os vão atrasar ou adiantar –, mas volta e meia damos de caras com um dia que tem exactament­e 24 horas, e esses são preciosos por serem tão raros. Não os ter como certos é o que nos deixa cheios de vontade de acordar, abrir a janela e olhar esperanços­os para um céu que não desiste de estar lá. ●

Através dos nossos filhos vemos materializ­ada a ferocidade da passagem dos anos. Fechamos os olhos, e quando voltamos a abrir já estão um palmo maiores

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O Humorista Bruno Nogueira
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JUAN CAVIA

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