Não esconder o sol com a peneira
Os que achavam que Marcelo havia “visto mal a coisa”, e que se especializara em dissoluções punitivas do parlamento, ficaram silenciosos.
Afinal o País queria mesmo algo diferente.
Como se viu nas urnas, a maioria absoluta de 2022 tinha afinal pés de barro, e correspondia mais a uma “anomalia” no PSD do que a uma verdadeira maré ideológica. Como exemplo, o presente eclipse de seis mandatos socialistas, na crucial Lisboa.
Sem contar com os votos da emigração, as “direitas” possuem hoje 135 deputados no parlamento, contra 94 das “esquerdas”.
Claro que podemos perguntar se todos os partidos sentados em São Bento se reveem naquelas designações.
Velha questão politológica, sobre designações doutrinais subjetivas e objetivas.
O PAN, por exemplo, através de um dirigente, diz-se “do centro”. A IL não aceita ser batizada como de direita, mas como se anuncia, liberal. O PS, para alguns, é esquerda, para outros centro-esquerda. E o Chega sempre rejeitou a expressão extrema-direita (“somos uma direita atípica”). Ao contrário do Bloco, o Livre não tem esquerda no nome, embora a afirme na alma. Etc.
Mas se optarmos pela designação objetiva, entre centros e extremos, são as “direitas”, repete-se, que possuem a maioria absoluta. E seria mais vincada se não houvesse o escândalo ADN, que, devido à confusão, teve 10 vezes o voto de 2022.
Outra questão é saber se essas “direitas” conseguem entender-se, abster-se de colocar obstáculos, ou refrear instintos familiares: como no provérbio, “pior do que inimigos, são irmãos”.
O PCP em eclipse diz que a sua votação foi insatisfatória, mas significou “resistência”.
O mesmo pode dizer o Chega, que resistiu à demonização geral e se transformou num verdadeiro fazedor e derrubador de reis.
Detesto o “eu bem vos disse”, mas a verdade é que tinha falado do assunto, amiúde, neste relatório minoritário.
Colocar de fora o Chega, e ao mesmo tempo aceitar o Bloco e o PCP, sendo certo que todos eles, independentemente das origens ideológicas ou percursos pessoais, aceitam as regras do jogo, parecia forçado e absurdo. E isso paga-se.
Se atirarem parte do vosso próprio povo para um saco de roupa suja, este rompe-se e aquele revolta-se. Os humilhados da terra, os vencidos da vida e as vítimas da fome também estão ali. Já não é a “esquerda” que domina, controla e orienta a fúria das massas.
Tal acontece 50 anos depois do 25 Abril, e 500 anos depois do nascimento de Camões.
“Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram.”
O triunfo do Chega deriva de erros e insatisfações acumuladas, de crimes rotulados de “azares monstros”, de paixões à solta que mataram a razão encarcerada, de incapacidade de autocrítica e de indiferença face aos homens de carne e osso.
O BE chegou a fazer de bandeira o “impedir o Chega de se tornar o terceiro partido”. Mas o Chega já era o terceiro partido.
E a comparação deste com o PRD é patética. O último nunca foi um partido de protesto, mas antes uma construção de tipo gaullista, para ajudar o general Eanes a concretizar o seu projeto nacional. Durou dois anos em importância, entre 1985 e 1987 (17% para 4%). O Chega é um grupo tribunício, que cresceu esmagadoramente, em 24 meses (7% para 18%) .
Mesmo na questão da Ucrânia, que tem unido os portugueses, Ventura foi injustamente encostado à parede, apesar de ter liderado a primeira manifestação autónoma de protesto contra a invasão, de haver proposto no parlamento a declaração da Rússia como Estado terrorista, de não ter saído do hemiciclo antes ou durante o discurso de Zelensky (que aplaudiu profusamente) e de ter declarado, urbi et orbi, “que a causa ucraniana reabilitou a palavra nacionalismo”.
O outro grande fenómeno contra a corrente é o Livre.
Mostrou que a esquerda pode sair da ortodoxia marxista-leninista e trotskista, e pensar nas pessoas comuns, sem ódio e com estudo.
Prestem-lhe mais atenção. ●