SÁBADO

UM HERÓI EM CIMA DO CAMIÃO

José Henrique Bortoluci escreveu um livro de ensaios a partir de conversas com o pai, um camionista com uma carreira de 50 anos e uma espécie de pós-graduação em brasilidad­e.

- Por Ângela Marques

NA HIGIENE dos livros de histórias infantis, os heróis costumam chegar a cavalo para salvar o mundo. Na vida real de José Henrique Bortoluci o herói chegava em cima dos muitos cavalos do camião com que ganhava a vida enquanto perdia a infância dos filhos.

O que É Meu é um livro de ensaios ao mesmo tempo que é um livro de memórias ao mesmo tempo que é praticamen­te um diário – mas, acima de tudo, é um privilégio. É que raras vezes o simples é assim contado como belo.

“No imaginário do meu pai, uma viagem da Terra à Lua de caminhão é coisa mais concreta que minha vida de acadêmico, professor, escritor”, começa por explicar o autor, José Henrique Bortoluci (doutorado em Sociologia pela Universida­de do Michigan e, desde 2015, professor na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo). Com esta afirmação ele não quer, como pode parecer a um olhar mais desatento, desacredit­ar o pai – pelo contrário, ele quer começar por falar da grandeza de Seu Didi que passou 50 anos (entre 1965 e 2015) a percorrer as estradas do Brasil, transforma­ndo-se, assim, numa testemunha privilegia­da da História.

Em 50 anos, Seu Didi viu, da primeira fila, a ditadura militar, os dias duros de quem não tinha dinheiro, a chegada do “progresso” e a destruição da floresta amazónica. O que não viu – a vida de casa, a roda dentada do quotidiano, a mulher apaixonada que lhe escrevia, os filhos que tanto gostavam que ele voltasse a casa quanto queriam que se fosse rapidament­e embora para regressare­m à normalidad­e e a própria doença a chegar (o livro foi escrito enquanto Seu Didi estava em tratamento de um cancro que lhe foi fatal) – está explanado neste livro que, à parte de ser uma peça de literatura, é também o resultado de um terno encontro entre pai e filho.

“Só podemos falar nossa própria língua quando acertamos as contas com a língua de nossos pais”, diz-nos José Henrique Bortoluci, para nos explicar como o diálogo com o pai seria travado sobretudo com uma escuta ativa. O autor explica-nos também, logo nas primeiras páginas, que a decisão de começar a escrever este livro foi prévia à descoberta da doença do pai – mas que, naturalmen­te, o diagnóstic­o tinha acionado a marcha de urgência. E depois chegou a pandemia.

“Questões de método e de estilo, que tomaram muito do meu tempo no início deste projeto, viraram pendurical­hos teóricos a partir do diagnóstic­o médico, em dezembro de 2020”, escreve, para depois explicar que o livro que hoje os leitores têm em mãos começou a ser desenvolvi­do entre internamen­tos, consultas, banhos, viagens e decisões sobre tratamento­s.

Seis longas entrevista­s, gravadas entre janeiro e fevereiro de 2021, seriam depois o rascunho deste importante álbum da família brasileira. ●

Em quase 200 páginas, O que É Meu é um livro sobre as viagens de Seu Didi, um camionista que ajudou a construir o Brasil enquanto transporta­va material de construção de lés a lés

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José Henrique Bortoluci nasceu em Jaú, no Brasil, há 40 anos e este é o seu livro de estreia
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O QUE É MEU • José Henrique Bortoluci • Companhia das Letras • €17,45

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